quarta-feira, 30 de março de 2011

Notas da primeira aula: O estudo dos signos e a lógica da cultura

Queridos,

Como prometido, seguem abaixo as notas de minhas duas últimas exposições, sobre o tema "O Estudo dos Signos e a Lógica da Cultura". Leiam com atenção e tragam suas questões para as próximas aulas, se for o caso.

Ad,

Benjamim


Fundamentos Linguísticos da Comunicação (GEC 043)
Aula no 1 (28 e 30/03/2011)

1.1.O estudo dos signos e a “lógica da cultura”




Wittgenstein, Derek Jarman (1993): sequência sobre abacaxis, cães e leões.

1.     Nessa passagem em que Wittgenstein fala a Russell e a seus alunos sobre leões (os que podem falar), cães (aqueles que aguardam a chegada de seus donos) e abacaxis (apenas os que são agradáveis), se entrevê uma espécie de “horizonte antropológico” das teorias da significação. O que isto quer dizer? Entre outras coisas, isto significa que a suposta “verdade” que fazemos inerir a nossos juízos sobre matérias de fato (ou mesmo àqueles de gosto, como os que exprimem nossa experiência sensível) não é informada por nenhum aspecto intrínseco aos juízos ou ao mundo (não é propriedade das coisas, tampouco característica de uma maneira de dizer coisas), mas sim relativa aos “modos de vida” (os alemães chamam a isto de weltanschaung) nos quais nos inscrevemos praticamente.

2.     Em outro momento do mesmo filme, Wittgenstein esclarece que a relação entre os diferentes modos de falarmos da realidade (os diferentes “jogos de linguagem” que praticamos) não é assunto que possa ser regulado teoricamente, a priori, mas apenas no contexto prático de nossas conversações ordinárias.

3.     A propósito destes exemplos, procuremos nos localizar melhor sobre as relações entre este suposto “horizonte antropológico” das significações e as questões mais clássicas das humanidades, no século passado, para identificarmos o fortíssimo acento que estas questões tiveram sobre as ciências humanas e sociais do século passado. Pois se houve algum lugar onde predominou a idéia de que a realidade é um constructo simbólico relativamente independente de critérios físicos para a existência, foi justamente nas ciências humanas da segunda metade do século XX: não por acaso, boa parte das correntes teóricas que predominaram nesse período neste campo, se deixaram informar por instrumentais de análise e problemas herdados das ciências da linguagem, em geral, e dos modernos ramos da lingüística, em particular.

4.     Em primeiro lugar, uma abordagem semiótica da cultura não vislumbra este conceito apenas como o conjunto dos “bens” concretos que uma sociedade ou grupo humano reconhece com seu acervo (como parte da tradição), tomando-os como objetos, artefatos, instrumentos ou obras: para além destes, ela reconhece sobretudo uma ordem (ou ainda um sistema) de “valores” compartilhados na mesma lógica humana que gerou cada uma destas coisas e que finalmente lhes confere este tipo específico de estatuto, enquanto “bens culturais”. A semiótica seria então o ramo de uma “ciência da cultura” que procura entender os processos culturais, na perspectiva de uma lógica da produção e circulação dos signos, dado o modo como estes operam concretamente na comunicação sobre o que quer que seja e reconhecido o valor específico desta operação (como veremos mais adiante, sua significação).

5.     Pois bem, nas definições mais recorrentes de verbetes de dicionários e enciclopédias vernaculares sobre “Semiótica” ou “Semiologia”, encontraremos igualmente essa interessante associação do estudo dos signos (e dos gêneros de ação que lhe são próprios) com os fundamentos de nossa experiência cultural: assumindo que os signos pelos quais expressamos estados de coisas (exteriores ou interiores) necessitem ser compreendidos na comunicação que podem ou pretendem instaurar, fica assim mais evidente que a constituição da experiência cultural na qual esta partilha é possível reclama o lugar dos signos como sendo o eixo em torno do qual os processos e fenômenos culturais se estruturam. Vejamos algumas destas definições:

        Semiologia - “Estudo do desenvolvimento e do papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos; teoria geral dos signos (nesta acepção, usa-se alternativamente ‘semiótica’); parte da medicina que se ocupa dos sinais e sintomas das doenças.”
Semiótica – “Ciência dos modos de produção, funcionamento e recepção de diferentes sistemas de signos de comunicação entre indivíduos e coletividades; semiologia/esta ciência, aplicada ao domínio particular da comunicação/ na lógica matemática, teoria dos símbolos.”
In: Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss. Rio: Delta (1988): pp. 1472.

        Semiologia – “Ciência geral dos signos, segundo Ferdinand de Saussure (...), que estuda todos os fenômenos culturais, como se fossem sistemas de signos, i.e., sistemas de significação. Em oposição à Lingüística, que se restringe ao estudo dos signos lingüísticos, ou seja, da linguagem, a semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuário, ritos, etc.); semiótica; estudo e descrição dos sinais e sintomas de uma doença; semiótica (nesta acepção, sintomatologia).”
Semiótica – “do grego Shmeiwtikh (‘Semeiotiké’, tekhne ou arte dos sinais). Denominação utilizada principalmente pelos autores norte-americanos, para a ciência geral dos signos; semiologia; semasiologia: arte de comandar manobras militares por meio de sinais, e não da voz.”
In: Novo Aurélio Século XXI. Rio: Nova Fronteira (1999): pp 1834.

        Semiologia – “Para Ferdinand de Saussure, ciência geral que tem por objeto todos os sistemas de signos (incluindo os ritos e costumes) e todos os sistemas de comunicação vigentes na sociedade, sendo a lingüística científica seu ramo mais proeminente; para Luis Prieto, estudo de todos os sistemas de representação que têm a comunicação como função, privilegiando o funcionamento dos sistemas de signos não-linguísticos (numeração de ruas, quartos de hotel, códigos navais, etc.); para Roland Barthes, estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como sistemas de significação: imagens, sons, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos, sistemas de parentesco, mitos, etc.”
Semiótica – “Para Charles S. Peirce, teoria geral das representações, que leva em conta os signos sob todas as formas e manifestações que assumem (lingüísticas ou não), enfatizando especialmente a propriedade de convertibilidade recíproca entre os sistemas significantes que integram”
In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio: Objetiva (2005): pp. 2543.

6.     O que se pode destacar destas passagens de definições de semiótica? Algumas noções são recorrentes em todas estas definições:
a. “signos” e “significação”;
b. “sistemas de signos” e “sistemas de significação”;
c. “signos culturais” e “fenômenos culturais”;

Por outro lado, o caráter de oposição, complementaridade e/ou contigüidade que define certos aspectos do objeto de estudos dessas artes ou ciências:
a. “sinais”, “signos” e “significação”
b. “linguagem”, “gestos”, “imagens”, “vestuário” e “ritos”

Finalmente, certos outros termos, sem serem recorrentes, chamam-nos a atenção pelo modo como se articulam, mais ou menos subentendidos nas duas ordens de definições:
a. a relação entre “sistemas de signos” e “modos de produção” culturais;
b. o caráter “científico” (de “estudos”) ou “técnico” (“artístico”) da competência semiótica;

7.     Exploremos, então, cada um destes pontos em separado, começando pelo ultimo grupo de noções: nos dois sub-itens que a constituem, encontramos, em primeiro lugar, a definição da semiótica enquanto técnica ou como ciência, associada à compreensão e à operação disciplinada com signos e, em segundo lugar, a implicação de que a competência neste campo tem um fundamento ligado aos modos de inserção em contextos culturais da experiência societária. Se voltarmos a alguns dos itens da leitura nesta unidade, veremos o quanto eles nos auxiliam a confirmar estes modos usuais de definir a pertinência dos saberes semióticos, neste seu especial aspecto.

8.     Assim sendo, em várias de suas definições, como “semiótica” ou como “semiologia”, encontramos recorrentemente a menção a noções tais como a de “signo”, “significação” e os “sistemas” que os implicam como objetos de estudo, de um lado; no outro ponto do espectro, temos a noção de que a “cultura” é o lugar ou instância privilegiada na qual a funcionalidade dos fenômenos associados aos usos dos signos (sua expressão e compreensão, em contextos necessariamente sociais e humanos) se efetiva.

9.     Melhor ainda será dizer que é a noção mesma de um “sistema de signos” que se lança adiante, numa reflexão mais afeita à idéia de que a cultura seja definida como um fenômeno apto a um estudo mais sistemático: as teorias semióticas parecem oferecer a uma ciência da cultura os elementos para pensar seus processos e fenômenos, a partir de um grau mais concreto de sua manifestação (veremos mais adiante, definidos como fenômenos de comunicação”). Não é por outra razão, portanto, que Umberto Eco finaliza a introdução de seu Trattato, a partir da definição do umbral superior do exame de todo e qualquer fenômeno de significação e/ou comunicação, caracterizando a cultura em sua dimensão comunicacional.

“Nos níveis mais complexos, temos a TIPOLOGIA DAS CULTURAS, onde a semiótica desemboca na antropologia cultural e contempla os mesmos comportamentos sociais, os mitos, os ritos, as crenças, as subdivisões do universo como elementos de um vasto sistema de significação que faculta a comunicação social, a ordenação das ideologias, o reconhecimento e oposição entre grupos, etc. Enfim, o campo semiótico invade territórios tradicionalmente ocupados por outras disciplinas como a ESTÉTICA  ou o estudo das COMUNICAÇÕES DE MASSA.”. Eco, U. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”: p. 9.

10.  De um ponto de vista mais histórico e menos estrutural, Iuri Lotman explora um outro aspecto da assimilação dos estudos humanísticos, a partir de um “faro” semiótico: ao considerar a “dupla função” dos objetos culturais (o prático e o simbólico), destaca-se, sob este ultimo aspecto, a conexão entre os fenômenos culturais e sua dimensão informacional (termo que, neste contexto, pode ser tomado como correlato da dimensão comunicacional dos fatos humanos, em Eco).

“Deste modo, todo o material da cultura pode ser examinado sob o ponto de vista de uma determinada informação de conteúdo e sob o ponto de vista de códigos sociais, os quais permitem expressar esta informação por meio de determinados signos e torná-la patromônio destas ou aquelas coletividades humanas”. Lotman, I. “Sobre o problema da tipologia da cultura”: pp. 32,33.

11.  Imaginando que estas recorrências de definições e de termos tenham algum significado teórico (isto é, nos auxiliem a pensar as relações entre o que é assunto de uma teoria dos signos e o objeto de uma teoria da cultura), comecemos pelo final destas alegações sobre a localização cultural mesma dos fatos semiósicos: nosso ponto de partida é a idéia, expressa por algumas definições, de que a “semiologia estuda os fenômenos culturais” ou ainda, “...o desenvolvimento e o papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos”.

12.  Nestas afirmações, a relação entre os fatos culturais e a ordem das significações está decerto postulada (o que quer que nos concirna teoricamente acerca dos signos é, assim sendo, da ordem da cultura), mas não argumentada suficientemente: assim, sabemos que os signos dependem de uma convenção para funcionar e que esta última é genericamente gestada na experiência culturalmente partilhada dos grupos humanos. O que nos resta especificar em mais detalhes é precisamente a natureza semiosicamente estruturada dos processos e fenômeno culturais (assim como a natureza culturalizada daquilo que deve ser assumido enquanto fenômeno de comunicação, para ser enfim abordado numa perspectiva semiótica): estes assuntos serão o tópico de nossas próximas explorações, mais adiante.

Referências Bibliográficas:
Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica;
Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”. In: Semiótica Russa.

Próximas Leituras:
Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica;
Kristeva, Julia. “A semiótica”. In: História da Linguagem.

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