segunda-feira, 30 de maio de 2011

Notas da última aula: o "significante" linguístico como veículo da significação linguística, em Saussure

Queridos,

Seguem abaixo as notas referentes à exposição de hoje, sobre o conceito de "significante", em Saussure. Até amanhã, disponibilizarei os comentários referentes à 2a avaliação parcial.

Ad,

Benjamim



Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 4 (25/05/2011)
Os Elementos da Semiose: da confusão entre veículos e objetos dos signos
4.2. A materialidade da significação: a noção do significante, em Saussure

1. O texto de Umberto Eco expõe ao claro o desafio implicado na definição do sentido preciso com o qual as teorias semióticas aportaram-se ao conceito mesmo de signo (que lhe seria supostamente próprio ou definidor de seu campo de atuação, no contexto das humanidades, por exemplo): se recobrarmos a imensa história do modo como, a variados títulos, este conceito central foi convocado à reflexão, o primeiro problema com o qual nos confrontamos é o da dificuldade de pensarmos a hipotética unidade sob a qual todas estas evocações poderiam ter sido postuladas (desta unidade dependeria, inclusive, a possibilidade de constituir a semiótica mesma enquanto disciplina teórica).

2. Já verificamos anteriormente como este modo de caracterizar a compreensão (como cindida em duas modalidades elementares) significa,  em verdade, as duas fontes da constituição dos saberes semióticos (que, para alguns, inclusive, põe em questão a hipótese mesma de sua unidade disciplinar, como já vimos anteriormente): com este propósito, examinemos como, logo no início de seu texto, o próprio Eco recapitula brevissimamente os vários períodos em que encontramos os arcanos de uma doutrina dos signos no percurso da reflexão filosófica sobre problemas que lhe seriam próprios.

“O projeto de uma ciência semiótica atravessou os séculos: frequentemente sob a forma de tratados orgânicos (pense-se no Organon, de Lambert, em Bacon, em Peirce, em Morris ou em Hjelmslev); na maioria das vezes, como série de alusões espalhadas no seio das discusses mais gerais (Sexto Empírico, Santo Agostinho ou Husserl); de quando em quando, sob a forma de prnúncios explícitos, auspiciando um trabalho a ser realizado, e como se todo o trabalho até então realizado tivesse que ser repensado em termos semióticos (Locke e Saussure). Cf. Eco, U. “Signo e Inferência”: p. 16.

3. Assim sendo, ao descrever seis classes nas quais a noção de signos é especialmente empregada na fala cotidiana (a saber, as inferências naturais, as equivalências arbitrárias, os diagramas, os desenhos, os emblemas e os alvos), podemos notar que estas várias modalidades se agrupam em torno de duas idéias principais, associadas ao esforço por se definir o conceito mesmo de signo: de um lado, a relação que lhe é própria (o “estar para algo” que lhe é próprio) envolve toda aquela ordem de fenômenos que gravita em torno das faculdades inferenciais que definem certos de nossos atos de compreensão, e da qual já tratamos em detalhamento, no modo como o conceito de signo se constrói nas suas primeira evocações, no pensamento clássico da Antiguidade, e como se cristaliza finalmente na filosofia lógica da significação, em Peirce.

4. Neste ponto da exposição, entretanto, é este segundo conjunto de fenômenos associados ao conceito de signo que merece algum destaque maior: assim sendo, por exemplo, se no caso das “inferências naturais” é a implicação causal que dá molde aos regimes da compreensão, em toda uma outra ordem de fenômenos (mais ou menos característicos de uma estrutura de compreensão típica do entendimento que temos sobre palavras e sentenças), não poderíamos reclamar, na condição de uma faculdade primordial desta compreensão, os mecanismos de implicação pelos quais a noção mesma de “signo” despontou para nossa exposição. Pois então examinemos este conjunto de fatos aos quais uma outra idéia de signo parece fazer sala.

“O signo é um gesto emitido com a intenção de comunicar, ou seja, para transferir uma representação própria ou um estado interno para outro ser. Naturalmente, presum-se que, para que a transferência tenha êxito, uma determinada regra (um código) habilite tanto o emissor quanto o receptor para entender a manifestação do mesmo modo.” Cf. Idem: p. 18,19.

5. Na relação que é própia ao modo como empregamos termos isolados da linguagem,   (em especial, as palavras), seus objetos são “afecções da alma”, sendo apenas neste sentido se pode dizer, com Aristóteles, que as palavras são signos: quando as empregamos, sinalizamos que há algo que se passa em nós e que desejamos exprimir através dos sons articulados que emitimos. No que respeita, em primeiro lugar, o modo como compreendemos palavras, a impossibilidade de defini-las enquanto signos diz respeito às condições sob as quais ela torna unidos os termos da expressão (as palavras) e as afecções da alma que elas representam: a matriz desta união não decorre das condições factuais mediante as quais as duas faces se ligam (palavras e afecções), pois não há motivação nesta relação, apenas convenção (é o que define as palavars como símbolos e não como signos, na perspectiva aristotélica).

“Prova disto é que, enquanto na Retórica o signo sera sempre entendido como princípio de uma inferência, em todas as páginas em que ele escreve sobre a linguagem verbal, o termo linguístiico (símbolo) se baseia no modelo da equivalência; pode-se dizer, alias, que é Aristóteles quem instaura o modelo da equivalência para os termos linguísticos: o termo é equivalente à próipria definição e é plenamente conversível com ela (como veremos no segundo capítulo deste livro).” Cf. idem: p. 36.

6. Com os estóicos é que emerge pela primeira vez, ao menos no contexto da Antiguidade, o espírito com o qual a investigação filosófica sobre os signos assimila à ordem inferencial (na qual o signo era pensado inicialmente) o domínio da expressão linguística de conteúdos mentais: para isto, operam sobretudo um refinamento na caracterização daquilo a que podemos chamar de conteúdos da expressão verbal; a virtude dos estóicos é a de assumir a realidade do discurso nas suas próprias modalidades, sem correlacioná-las necessariamente com as condições de verdade dadas nas idéias e nas afecções. Nos termos em que Eco compreende estas transformações, é com a filosofia estóica, que os objetos da referência assumem a condição de entidades do discurso e da razão (os lekta “incorporais”) e não do mundo físico. Nestes termos, se não chegam a incorporar as palavras aos signos, decerto que os estóicos elaboram uma sugestiva filosofia dos conteúdos linguisticos e de sua correspondente forma lógica: quando examinarmos, mais tarde, o conceito semiótico de “significado”, verificaremos a importância deste tipo de abordagem, característico da antiguidade das teorias semióticas (mas do qual nos restou muito pouca documentação sobre os detalhes da argumentação).

7. No modo como, ainda segundo Eco, Santo Agostinho tentou unificar estas duas ordens da concepção do signo, sete séculos depois dos estóicos (e dezesseis séculos antes de Saussure), poderíamos estabelecer que a relação entre fatos é, de certo modo, uma resultante (decerto cronológica, oxalá ontológica) das relações entre as expressões linguísticas e seus conteúdos (em termos, entre as palavras e seus significados). Uma admissão como esta nos conduziria a pensar o estatuto lógico do signo como localizado no âmbito da conotação (do sentido indireto), ao passo que os signos linguísticos seriam, por definição, denotativos. Mais tarde, entretanto, a questão da significação se sofistica, em Agostinho, quando considera a função própria aos termos de ligação (os sincategoremáticos), o que dá início ao que Eco designa como “modelo instrucional” ou seja, a análise contexual do significado.

8. Em todas estas questõe, entretanto, estamos nos reportando muito mais àquilo que dignifica semioticamente a expressão linguística, pelo fato de podermos estipular os conteúdos relativos a cada uma de suas manifestações ou ocorrências: assim sendo, enunciados e proposições verbais são “signos” porque seu significado pode ser determinado, no modo como a ordem de seus conteúdos manifesta-se em estado de sistema; mas é fato que este não é ainda o tema de nossa reflexão, pois é relativo à unidade dos “significados”, de que trataremos a seguir, o que deve então dirigir nossa atenção para aquilo que constitui o veículo propriamente dito de uma significação que se manifestaria na articulação das formas linguísticas. Precisamos, então, pensar no que é que faz dos sons um fenômeno de estudos próprio ao que chamaríamos de signos: o que há, enfim, nas expressões verbais, que as configura enquanto partes de uma significação?

“Também aqui convém manter distância do puro lado material, objetivo e individual. Cada um de nós, ao falar, possui um timbre pessoal de voz, peculiaridades de pronúncia, uma entonação ligada ao humor e à origem regional: isso faz com que aprópria frase, ou até a própria palavra, cedam lugar, cda vez, a sequências de sons bem diferentes. Se com base em sons materialmente tão diferentes reconhecemos ‘a mesma palavra’, é porque identificamos entidades estáveis, fundamentadas em códigos e convenções culturais, e portanto não individuais, mas coletivas”. Cf. Volli, Ugo. In: “Signo”: p. 33.

9. A Linguística estrutural de Saussure vai resolver esta questão do sistema arbitrário sob o qual as expressões linguísticas podem ser explicadas, a partir do modo como ele concebe o próprio signo linguístico: neste caso, temos que separar momentaneamente aquilo que é central para a linguística (o estudo da língua enquanto sistema de regras), daquilo que nos interessa agora, a saber, o modo como Saussure define a unidade minima do signo, enquanto parte deste sistema. Vejamos como estas questões se constroem, em seguida.

10. Um aspecto decisivo da caracterização dos veículos linguísticos da significação diz respeito ao modo como Saussure estabelece o princípio que confere ao significante o valor que lhe é próprio nos processos linguísticos: se a união deste com o significado envolve a arbitrariedade do signo linguístico, no que respeita esta suposta “materalidade” do significante, ela também manifesta um aspecto do sistema da lingual, que é o da linearidade sob a qual seus valores são constituídos, em cada unidade minimamente dotada de sentido (como na união dos sons que formam um termo simples e o sistema de valores consoantais que ela implica).

Em um sistema simbólico os significantes servem apenas para diferenciar-se reciprocamente. Para poder faze-lo com eficácia, a diferença deve ser sistemática; por exemplo, nas palavras, deve-se proceder por variações dentro de certos sons considerados pertinentes da lingual, os fonemas. Mas também os fonemas dependem do sistema linguístico e são arbitrários”. In: idem: p. 47.

11. A definição linguística do “signo”, assim como os princípios que regem sua articulação, no sistema de valores que é a língua, influenciou enormemente a constituição dos saberes semiológicos, como já vimos antes, em especial no modo como Roland Barthes restitui ao papel da descoberta da obra do lingüista genebrino a maior influência de seu turno semiológico, entre o fim dos anos 50 e o início dos 60; a incidência dos saberes lingüísticos no processo de constituição da semiologia enquanto ciência se justifica pelo modo como as ciências da linguagem permitem à nascente ciência geral dos signos a observação de uma série de fenômenos correlatos às linguagens naturais (mas não articulados a partir do mesmo tipo de matéria própria à língua), e que poderiam ser observados, a partir de princípios firmados pelo modo como Saussure definiu o objeto e as finalidades da própria linguística (o que não se deu de modo simples, mas por uma série de transposições e de especificações feitas à definição saussureana do signo linguístico).

“…entre os signos linguísticos, é preciso, com efeito, separar as unidades significativas, cada uma das quais está provida por um sentido (as ‘palavras’ ou, para ser mais exato, os ‘monemas’), e que formam a primeira articulação, das unidades distintivas, que participam da forma, mas não têm diretamente um sentido (os ‘sons’, ou melhor, os ‘fonemas’) e que constituem a segunda articulação”. Cf. Barthes, R. “Significado/significante”: p. 42.

12. Numa passagem do capítulo sobre o signo, nos Éléments, Barthes nos sugere um modo de pensar o lugar mais próprio desta instância mais concreta ou atual dos processo de significação (e que não deve ser jamais confundida com o conceito mesmo do “signo”, numa perspectiva lestritamente linguística): se tomarmos como referência o princípio da dupla articulação dos signos linguísticos, podemos estipular o lugar mais próprio da dimensão significante no domínio das relações puramente diferenciais que caracterizam o signo linguístico (aquela que é própria à disposição estruturada dos sons, e que não tem correlação necessária com o sentido e a referência dos termos simples). O domínio da fonologia ilustraria , assim, um aspecto puramente significante, que constitui o signo linguístico enquanto unidade de um sistema (portanto, relativa a regras e valores), antes mesmo da remissão a um sentido propriamente semântico.
  
Referências Bibliográficas:
BARTHES, Roland. “Significado/significante”. In: Elementos de Semiologia;
ECO, Umberto. “Signo e Inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;
VOLLI, Ugo. “Signo”. In: Manual de Semiótica.

Próximas Leituras:
ECO, Umberto. “Sobre o ser”. In: Kant e o Ornitorrinco;
QUINE, W.v.O. “Sobre o que há”. In: Existência e Linguagem.


sábado, 28 de maio de 2011

Notas de Aula: o fundamento do signo, em Peirce

Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 4 – 23/05/2011
Elementos da Semiose: da confusão entre os veículos e objetos do signo

4.1. O motor lógico da semiose: o fundamento do signo, em Peirce

1. Como vimos no decorrer das últimas sessões, a idéia de “signo” com a qual se pode operar coerentemente, do ponto de vista de uma aproximação analítica aos fenômenos da signficação e da interpretação envolve pelo menos duas concepções distintas de nossa compreensão: se imaginamos que as alternativas lógicas ou linguísticas da semiótica concebem esta noção central a partir de princípios mutuamente incomensuráveis da estrutura da compreensão, então nos pomos de saída num terreno permanentemente dividido da definição mesma sobre esta noção central da disciplina; para muitos de seus comentadores mais importantes, esta diferenciação radical entre a lógica e a linguística aparta, de saída, qualquer idéia de uma unificação teórica das abordagens semióticas. 


"Vejamos esta intervenção de Gilbert Harman: 'a fumaça significa (means)  o fogo e o termos combustão significa fogo, mas não no mesmo sentido de significa. O termo significar é ambíguo. Dizer que a fumaça significa o fogo é dizer que a fumaça é um sintoma, um signo (sinal), uma indicação, uma prova de fogo. Dizer que o termo combustão significa fogo quer dizer que as pessoas usam aquele termo para significar fogo(...)'. A objeção de Harman choca-se com o consensus gentium  da tradição filosófica. Dos estóicos à Idade Média, de Locke a Peirce, de Husserl a Wittgenstein, não só se procurou o fundamento comum entre a teoria do significado linguístico e a teoria da representação 'pictórica', como também entre a teoria do significado e a teoria da referência". Cf. Eco, U. "Signo e inferência": p. 23.

2. Em primeiro lugar, há que se considerar que a noção de “signo” sequer nasceu como patrimônio de um projeto ou programa de disciplinas que pudessem ser originalmente pensadas como “semiótica”: já identificamos antes que a reflexão sobre os signos nasce no contexto de certas disciplinas interpretativas que possuíam como objeto central o exame de fenômenos como os sintomas clínicos; nestes termos, a noçao de “signo” irrompe para as práticas médicas como o correlato de uma certa capacidade adestrada para a observação de fatos exteriors, com base em uma forma de conjectura a que poderíamos chamar de “indiciaria”, tal como a definiu o historiador Carlo Guinzburg.

3. Por outro lado, o desenvolvimento de um saber mais sistemático sobre os signos, no contexto das ciências humanas, no ultimo terço do século passado (em especial, no campo dos estudos sobre fenômenos e processos comunicacionais), decorreu da notória influência que as ciências da linguagem (em especial a fonologia) exerceram sobre largos segmentos da pesquisa etnológica, em especial quando certos ramos da antropologia buscavam examinar os fenômenos de diferentes culturas, a partir de uma chave que prescindisse das variáveis geográficas e históricas de sua sediemntação. No contexto da predominância do método estrutural nas ciências humanas, pode-se dizer que constituiu-se um autêntico “campo do signo”, como matriz para a reflexão sobre espectros consideráveis da cultura contemporânea, a partir da idéia de que estes fenômenos se manifestavam essencialmente, na ordem das significações.


"Para lá de uma função de estar por, todas as outras identidades desaparecem. A única coisa que parece ficar fora de discussão é a atividade da significação. Parece comum aos humanos (...) produzir fatos físicos - ou ter a capacidade de produzir classes de fatos físicos - que estão em substituição de outros fatos ou entidades, físicos ou não, que os humanos não são capazes de porduzir no ato da significação (...). Os processos de significação seriam o artifício indefinível que os seres humanos, em sua implossibilidade de ter o mundo inteiro (real e possível) ao alcance das mãos, poriam em ação para suprir a ausência dos signos.". Cf. Idem: p. 22

4. Estas duas matrizes da concepção sobre o signo, como já se disse, não são facilmente redutíveis uma a outra: significará isto, entretanto, que não seja possível integrá-las, em alguma medida? Tal é uma questão que se põe para as teorias semióticas, desde o momento em que suas categorias passaram a incorporar-se ao vocabulário das humanidades, no ultimo século. Mas esta não é a pergunta que nos motiva, muito embora nosso tema de momento possa ser auxiliar na maneira de enfrentar esta questão. Nos perguntamos, assim, de saída, sobre a unidade do signo, no modo como ela pôde ser concebida, no decorrer de mais de 2.500 anos da reflexão a seu respeito: nosso propósito é examinar com parcimônia os elementos através dos quais o signo pode ser assimilado a esta condição pela qual ele se concebeu como o veículo de nossas cognições e da estrutura de nossas expressões.

5. Ao início do primeiro capítulo de seu Semiótica e Filosofia da Linguagem, Umberto Eco evoca as várias idéias através das quais a noção de signo se formulou, na história do pensamento: não seria exagero postular uma espécie de via antiqua das teorias semióticas como consistindo em todas aquelas manifestações de uma concepção do signo como associada aos processos cognitivos (em última instância, relativos ao modelo conjectural das inferências): ao longo de toda uma série de registros da definição dos signos, ainda vigentes em nossos dias, esta noção de que nossos modos de conhecer a realidade implicam numa dada incompletude manifesta pela idéia de que nosso acesso à totalidade de alguma coisa é sempre mediado provisoriamente pelo signo; assim sendo as inferências naturais (e, em menor escala, os diagramas, os desenhos e o salvos) exprimem, segundo Eco, esta estrutura na qual o signo é um vetor de nossos modos de conhecer uma realidade, na estrutura que é própria à metonínima (isto é, de uma parte para seu todo).


"O que faz pensar numa relação sinedóquica, como se o signo fosse uma parte, um aspecto, uma manifestação periférica de algo que não se mostra em sua totalidade; portanto latente, mas não do todo, porque deste iceberg emerge pelo menos a ponta. Ou então a relação seria metonímica, visto que os dicionários falam do signo (sinal) também no caso de 'qualquer vestígio ou marca visível, deixado por um corpo sobre uma superfície'. Indício de um contato, portanto, mas indício que, através da própria forma, revela algo da forma do impressor". Cf idem: p. 17.

6. Há decerto uma razão histórica para que os signos sejam assimilados nesta condição de elementos do conhecimento e de sua justificação racional, sendo ela, na verdade, um dado da própria genealogia de um saber sobre signos: é que a filosofia da Antigüidade reservara aos signos esta condição de serem veículos de certos tipos de conjecturas pelas quais podemos dizer que alguma coisa é real ou que certos aspectos da conduta possam ser justificados, de modo seguro. Nestes casos, muito embora o emprego das palavras e do discurso verbal possam ser instrumentos importantes desta comunicação, não são estes pensados na condição de “signos” (na história da filosofia, esta assimilação da palavra à significação será feita bem mais tarde).

7. Neste contexto, precisamos nos interrogar sobre o que constitui, enfim, a estrutura do signo que opera na condição de ser o veículo de nossas inferências: um primeiro aspecto a se destacar é o de que tal signo não se define pelo conteúdo substantivo que assume, pois muitas coisas diferentes podem operar a título de “estímulos” para os processos inferenciais em que estas eventualmente participam. Neste caso, o caráter de significação que elas assumem é necessariamente relativo ao contexto da interpretação na qual estas substâncias jogam enquanto partes do signo. Isto significa apenas que, muito embora uma mancha de sangue no tapete de meu quarto possa funcionar como elemento disparador de uma série de inferências que eu posso praticar sobre sua ocorrência (o que a causou? De que é feita? Há quanto tempo está ali? a quem ou ao quê pertencia?), em nenhum sentido logicamente válido deve ser assumida como “sendo” um signo em si mesma.

8. Ao fim da exposição sobre as relações entre significação e inferência, examinamos o modo como Peirce investe contra o assim chamado “espírito do cartesianismo” na filosofia moderna, ao criticar o alcance de supostas faculdades inerentes ao espírito humano: em seu lugar, Peirce avança a idéia de uma implicação entre a estrutura das ações mentais que caracterizam o regime inferencial do entendimento e a noção mesma de “signo”, que dará origem às novas concepções sobre o conhecimento que ele avançará, a partir dali.

9. Se nosso pensamento se estrutura sobre uma base inferencial de implicações, é porque esta mesma base reflete uma estrutura mais profunda, que é a do funcionamento mesmo dos signos, isto é: aparece sob a forma de uma substância ou qualidade individual designada por seu conceito (como no predicado), ou como um fundamento (que pode ser tanto material como conceitual) que aponta para um universo de referências (os objetos supostos de todo signo), finalmente gerando uma lei ou um hábito inferencial ou ainda um significado proposicional (um interpretante).

10. Nos interessa examinar, em especial, a noção mesma de “fundamento” do signo, pois é nela que se concentram alguns dos problemas mais importantes da definção peirceana do signo: em primeiro lugar, o fato de que muitos dos comentadores da tradição semiótica frequentemente confundem este estrato com o conceito mesmo do signo. O “fundamento” do signo constitui, para Peirce a face materialmente mais notável dos processos de significação, pois manifestam a aspectualização que é inerente aos modos pelos quais a inferência constrói relações entre segmentos da experiência e do entendimento. Segundo Peirce, esta materialidade aspectual é apenas uma das referências que todo pensamento constrói, na base de uma inferência.


"Ora, um signo tem, como tal, três referências: primeiro, é um signo para algum pensamento que o interpreta: é um signo de algum objeto ao qual, naquele pensamento, é equivalente: terceiro, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o põe em conexão com seu objeto". Cf. Peirce, “Algumas consequências…”: p. 269,270.

11. Na estrutura em que os signos são definidos como “veículos” de um pensamento, a ocorrência de um signo é sempre relativa a outro signo, do mesmo modo que cada cognição que temos é reportada por cognições anteriores: nesse sentido, um signo é inseparável do significado global pelo qual ele se exprime ou, como afirma Peirce, o signo é inseparável do caráter interpretativo do pensamento. Esse aspecto define o interpretante como um componente da definição peirceana do signo: numa perspectiva mais genérica, podemos dizer que essa parte do conceito se reporta ao que chamaremos, mais adiante, de conceito semiótico do significado.

12. Para além de ser relativo a outro signo (que se exprime, na relação com o primeiro como sendo seu significado), o conceito peirceano de signo implica uma alteridade, no plano dos objetos do pensamento: um signo se reporta a outro objeto que não aquele pelo qual ele exprime enquanto tal: há algo externo ao signo, e do qual ele não separa, na condição de signo; Peirce designa esta parte do conceito de signo, como sendo o objeto do signo. Finalmente, naquilo que é próprio ao signo enquanto veículo de representações, são certos aspectos que definem o modo como ele se reporta aos objetos e aos significados que lhe correspondem, e aqui falamos das propriedades ou qualidades intensionais do signo, a que Peirce define como sendo o fundamento de todo signo.

Referências Bibliográficas :
ECO, Umberto. « Signo e inferência ». In : Semiótica e Filosofia da Linguagem ;
PEIRCE, Charles S. « Algumas consequências de quatro icapacidades ». In : Semiótica.

Próximas Leituras :
BARTHES, Significado/significante ». In : Elementos de Semiologia ;
ECO, Umberto. "Signo e inferência". In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;
VOLLI, Ugo. « Signo ». In : Manual de Semiótica.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Questões da 2a avaliação parcial

Queridos,

Seguem as questões da 2a avaliação parcial da disciplina: mais uma vez, peço desculpas pelo atraso e esclareço que a data da entrega das respostas é a próxima quarta-feira, dia 25/05. A quem preferir entregar a prova no decorrer da aula, pdoe fazê-lo ao fim da aula. Também receberei as respostas por e-mail, no limite do horário habitual do início da noite.

Ad,

Benjamim


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CULTURAIS E MÍDIA

Disciplina: Fundamentos Linguísticos da Comunicação (GEC 043)
Professor: Benjamim Picado
Horário: 2as e 4as, de 14 às 16:00
Local: Sala C-211 (2as) e C-214 (4as)

2a AVALIAÇÃO PARCIAL

Modo de Usar: Vc. deve responder ao menos duas questões desta unidade do curso (nesta escolha, dê preferência a responder uma de teor mais teórico e a outra, de vies mais analítico). Para o correto tratamento das questões da prova, utilize sua própria capacidade de argumentação, procurando exercitar certo distanciamento com respeito ao modo de exposição das idéias dos textos centrais da unidade (por exemplo, dê preferência às paráfrases em oposição à transcrição literal dos textos, a não ser nos casos estritamente necessários). No que respeita a compreensão dos itens da unidade, valorize um tratamento mais esquemático das idéias mais importantes, prestando sempre atenção naquilo que é especificamente solicitado em cada questão. Nas perguntas de teor mais analítico (de exame de fenômenos), procure correlacionar os dois domínios requisitados (o da compreensão dos textos de base e o do exercício da análise dos materiais propostos).

3a Unidade: a estrutura elementar da compreensão

1. Discorra brevemente, partindo das idéias centrais dos textos de Carlo Guinzburg e de Ugo Volli (sobre as modalidades elementares da compreensão e da interpretação), tentando identificar o modo como a noção de signo se torna central para a inferência e para o entendimento textual.

2. Considere a seguinte passagem de “Algumas consequências de quatro incapacidades”, de Charles Sanders Peirce (à sua página 270):

“Uma vez que o signo não é idêntico à coisa significada, diferindo desta sob alguns aspectos, ele deve ter claramente alguns caracteres que lhe pertençam a si mesmo, e que nada têm a ver com sua função representativa. Denomino estas de qualidades materiais do signo (…). Em Segundo lugar, um signo deve ser capaz de estar conectado (…) a um outro signo do mesmo objeto ou ao próprio objeto. Assim as palavras não teriam utilidade alguma a menos que pudessem ser conectadas em sentenças através de uma cópula real que ligue signos de uma mesma coisa.”

Argumente sobre estas duas propriedades do signo em Peirce e os princípios através dos quais Ferdinand de Saussure define, por seu turno, as características do signo linguístico, em “Natureza do signo linguístico”.

3. Considere a seguinte peça publicitária do produto Liposyne, dos laboratórios Vichy:






Considerando a composição entre os segmentos visuais (objetos, formas, côres) e linguísticos (sentenças, nomes próprios) que compõem este anúncio, procure analisar a peça em questão, levando em conta aqueles seus componentes que mais nitidamente se relacionam com os conceitos de signo até aqui trabalhados, especialmente na medida em que eles impliquem a idéia de atividade inferencial ou de uma compreensão baseada em convenções e códigos.

Referências Bibliográficas:
Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais;
Peirce, Charles S. "Algumas consequências de quatro incapacidades". In: Semiótica;
Saussure, Ferdinand de. “Natureza do signo linguístico”. In: Curso de Linguística Geral;
Volli, Ugo. “Interpretação”. In: Manual de Semiótica.

Notas de Aula: significação e convencionalidade no signo linguístico, em Saussure

Queridos,


Em seguida, as notas da exposição de quarta-feira, sobre a concepção do signo em Saussure e suas relações com as vertentes linguísticas das teorias da significação. Ainda hoje, disponibilizarei as questões da 2a avaliação parcial da disciplina.


Ad,


Benjamim


Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 3 (18/05/2011)
A Estrutura Elementar da Compreensão

3.4. Significação e Convenção: os princípios do signo linguístico, em Saussure

1. Concluindo nosso percurso pelas modalidades elementares da compreensão, encontramos finalmente uma linhagem das teorias da significação na qual o conceito mesmo de “signo” se caracteriza pela relação com os problemas que definem o regime do entendimento textual: pois bem, esta outra ordem de concepções na qual o signo aparece comprometido com a compreensão de sentenças e palavras é precisamente aquela na qual o interesse pelas teorias semióticas emergiu, pela primeira vez, como um traço característico de sua inclusão ao universo de problemas das ciências humanas e sociais (e, muito especialmente, no campo de estudos da comunicação).

2. Pois é precisamente, esta ordem das concepções sobre o signo semiológico (que culminam, por exemplo, no programa de pesquisas semiológica de Roland Barthes, no decorrer dos anos 60 do século passado) que pretendemos averiguar: não é o caso,, entretanto, de retomarmos as questões relativas à aplicação das categorias linguísticas ao universo de manifestações extra-linguísticas (aspecto que já tratamos em unidades anteriores), mas o de examinar as fontes deste discurso que toma os fatos semiológicos enquanto fatos de linguagem. Nestes termos, nos interessa avaliar a noção mesma de “signo”, trabalhada pela semiologia, a partir do modo como ela se define, relativamente às estruturas elementares da compreensão (em especial, a capacidade do entendimento textual).

3. Um aspecto que nos permitirá tratar, em separado, a definição do signo enquanto entidade ligada aos modos da expressão e da comrpeensão linguísticas, diz respeito ao estatuto epistemológico dos modos lógicos de implicação: em certos casos de inferência (por exemplo, “se usa um broche com foice e martelo, então comunista”), as condições de veridição de uma proposição não são dadas por fatos anteriores, mas firmadas por convenção, isto é, estabelecidas como um princípio coletivo (ou social) e arbitrário da significação. O valor de conhecimento que se estabelece para as proposições, nestes casos funciona como uma resultante de práticas sociais institucionalizadas, e deve ser explicado como um recurso dos signos a este modo de sua compreensão. Entender enunciados, neste caso, é entender um conjunto de signos que se opera a partir dos princípios de concatenação próprios às regras da linguagem. 

4. A Linguística estrutural de Saussure vai resolver esta questão do sistema arbitrário sob o qual as expressões linguísticas podem ser explicadas, a partir do modo como ele concebe o próprio signo linguístico, como constituinte de um sistema de valores: neste caso, temos que separar momentaneamente aquilo que é central para a linguística (o estudo da língua enquanto sistema de regras), daquilo que nos interessa agora, a saber, o modo como Saussure define a unidade minima do signo, enquanto parte deste sistema. Vejamos como estas questões se constroem, em seguida.

5. Assim sendo, a definição do signo linguistico está incluída na noção do “sistema”, através do qual Saussure concebe o objeto da linguística: sendo a língua definida como um “sistema de signos”, e não como um “conjunto” ou “enumeração” dos mesmos, a definição do signo linguístico, na perspectiva saussureana, não o introduz como uma unidade puramente individual, mas como o termo de uma função, união de certos aspectos dos processos de nomeação, que não podem ser separados, sem o sacrifício da idéia mesma de signo que funciona num sistema de valores: Saussure começa por identificar nas unidades que constituem a língua esta unidade entre um aspecto material (sonoro ou gráfico) e uma ordem de idéias (às quais associamos instantaneamente as emissões dotadas de certo grau de articulação).

·         Saussure, Ferdinand de. “Princípios Gerais”: p. 79,80.

6. É assim portanto que surge a idéia de uma definição do signo linguístico como união de uma porção acústica (um significante) e outra de suas partes como referido aos conceitos (o significado): elas se constituem na unidade do signo como partes mutuamente indissociáveis (a imagem saussureana é a do verso e reverso de uma mesma folha de papel).
7. Dois princípios regem fundamentalmente a constituição do signo enquanto tal unidade complexa: em primeiro lugar a arbitrariedade da relação entre significante e significado (isto é, o fato de que esta unidade não é explicável em termos de determinação de cada uma de suas partes, entre si, mas por um princípio convencionado, instituído no partilhamento social), fato este que explica o aspecto de instituição social, através do qual Saussure define a língua enquanto objeto de estudos da linguística;

8. em segundo lugar, a porção acústica do signo é determinada em seu valor, apenas no contexto de suas relações com outras porções de sons e de palavras (isto significa que o valor de uma unidade sonora é sempre o resultado de sua articulação com outras unidades do sistema inteiro, seja no plano da oposição presencial pela qual sons e palavras se articulam, seja no nível da associação própria à relação entre uma porção de sons e enunciados e seus correspondentes conteúdos), o que caracteriza a dimensão de sistema de signos que define a língua enquanto objeto.

9. A definição linguística do “signo”, assim como os princípios que regem sua articulação, no sistema de valores que é a língua, influenciou enormemente a constituição dos saberes semiológicos, como já vimos no passado, no modo como Roland Barthes restitui ao papel da descoberta da obra do lingüista genebrino a maior influência de seu turno semiológico, entre o fim dos anos 50 e o início dos 60; a incidência dos saberes lingüísticos no processo de constituição da semiologia enquanto ciência se justifica pelo modo como as ciências da linguagem permitem à nascente ciência geral dos signos a observação de uma série de fenômenos correlatos às linguagens naturais (mas não articulados a partir do mesmo tipo de matéria própria à língua), e que poderiam ser observados, a partir de princípios firmados pelo modo como Saussure definiu o objeto e as finalidades da própria linguística (o que não se deu de modo simples, mas por uma série de transposições e de especificações feitas à definição saussureana do signo linguístico).

10. Segundo Barthes, a importância do conceito linguístico de signo como unidade é o de definir para a própria linguística, (ou pelo menos para seus ramos que encontram-se concernidos com a dimensão participativa dos significados como entidades linguísticas) um princípio operatório que consiste em estabelecer que na linguagem encontramos, como estruturalmente comprometidas, duas espécies de unidades: primeiramente, as unidades significativas (os monemas ou, simplesmente, as palavras) que são portadoras de um sentido semântico simples, assim como as unidades distintivas (grosso modo, os fonemas ou sons da língua), que, segundo Barthes, participam da forma, mas não são necessariamente portadoras de sentido. A suposição de que o signo linguístico envolva uma diferenciação teórica, mas não fenomênica, entre significantes e significados aparelha a própria linguística a firmar o princípio da dupla articulação dos signos da língua.

Leitura Obrigatória:
SAUSSURE, Ferdinand de. "Natureza do signo linguístico" e “Imutabilidade e mutabilidade do signo”. In: Curso de Linguística Geral.

Próximas Leituras:
BARTHES, Roland. “Significante/significado”. In: Elementos de Semiologia;
ECO, Umberto. “Signo e Inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;
VOLLI, Ugo. “Signo”. In: Manual de Semiótica.

Notas de Aula: o logos semiósico do entendimento, em Peirce

Queridos,

Peço que me desculpem pélo atraso no envio das últimas notas de aula, prometo que tudo estará sanado até o final do dia de hoje. Seguem agora as notas da aula de segunda-feira, sobre as relações entre pensamento e inferência, nos textos anti-cartesianos de Charles S. Peirce.

Divirtam-se,

Benjamim


Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 3 – 16/05/2011
A Estrutura Elementar da Compreensão

3.3. Signos, Inferência e Entendimento: o logos semiósico, em Peirce

1. Estabelecidas até aqui as condições em que o exame dos signos nos identifica com certas concepções acerca de uma hipotética “estrutura elementar da compreensão”, nos resta examinar como é que em cada uma das duas concepções sobre regimes do entendimento se deixa entrever uma idéia precisa sobre a estrutura mesma do signo, enquanto elemento motriz de uma interpretação do mundo: apenas a título de um início de percurso, precisamos nos interrogar, por exemplo, que tipo de definição sobre o signo seria própria a um modelo inferencial da compreensão. Sendo este o tema que nos engaja agora, tomando de partida as idéias do filósofo e lógico americano Charles Sanders Peirce (1839/1914).

2. Nesta ordem de problematizações, primeiramente temos que considerar o modo como se origina um postulado semiótico para a lógica, em especial no contexto da rejeição de duas idéias que matriciaram durante muitos séculos a interrogação sobre as estruturas mais profundas de nossa consciência (isto é, de nossa relação com o mundo e com nós mesmos). Assim sendo, esta exploração lógico-semiótica dos temas da filosofia da consciência (originária, ao menos nos tempos modernos, da influência do cartesianismo, a partir do século XVII) tem por fontes principais a postulação de duas supostas faculdades inerentes ao nosso modo de intelecção do mundo, a saber: o conhecimento de nós mesmos e o conhecimento do mundo exterior. Na perspectiva do cartesianismo, conhecemos o mundo exterior como conseqüência de um conhecimento de nossa própria interioridade (este é, por exemplo, o significado da implicação entre pensar e existir, proposta nas Meditações, de Descartes).

3. Pois bem, em primeiro lugar, numa perspectiva semiótica, não podemos partir da suposição de que o conhecimento da nossa interioridade seja uma faculdade individual do sujeito que conhece: não conheço meu eu, independentemente de meu conhecimento sobre fatos externos (isto é algo que as escolas contemporâneas da psicologia e da psicanálise já puderam firmar como o problema da gênese da subjetividade, na “fase do espelho”, por exemplo).

4. Se a ocorrência desta interioridade fosse algo absolutamente restrito à ordem do indivíduo, jamais teríamos o que dizer de nós mesmos a outrem, de modo a nos fazermos entender. A tese sobre a “interioridade do eu” se confronta com a da “comunicabilidade” essencial da subjetividade. Peirce se refere a esta impossibilidade como sendo uma interdição à faculdade da introspecção, isto é, não temos nenhum conhecimento direto de nós mesmos, pois quando falamos de um “eu”, para nomear um centro de nossas experiências, nos valemos da derivação da estrutura pela qual conhecemos fatos externos. Em seus textos anticartesianos, Peirce evoca este pequeno drama da construção da subjetividade por parte da criança que move os corpos do mundo em torno de si, lentamente descobrindo que esta ação é relativa a seu próprio corpo, até o ponto da descoberta da linguagem.


"Ninguém questiona que quando uma criança ouve um som, ela não pensa em si mesma na condição de ouvinte, mas sim no sino ou em outros objetos na condição de soantes. E o que acontece quando ela quer mover uma mesa? Será que pensa em si mesma como desejosa desse ato ou apenas na mesa como algo adequado para se mover? Está fora de dúvida que é o segundo pensamento que nela ocorre; e até que seja provada a existência de uma autoconsciência intuitiva, deve-se considerar como uma suposição arbitrária  e sem fundamento a resposta que aponte para a primeira destas alternativas.". Cf.  Peirce, “Questões sobre certas faculdades... » : p. 248,249.

5. Por sua vez, nosso conhecimento dos fatos externos não é igualmente direto, ou dado aos nossos sentidos, isto é, não possuímos a faculdade da intuição (como uma cognição imediata) daquilo que é exterior à nossa consciência: o que sabemos sobre a exterioridade é sempre algo derivado de proposições anteriores, é sempre algo que se coloca na estrutura implicativa que é inerente aos modos da predicação proposicional (isto é, conhecer objetivamente alguma coisa nunca é algo que se dê de modo absolutamente determinado pelos objetos exteriores de nossa consciência, mas pelos conceitos que formamos e sedimentamos num sistema de crenças, a seu respeito, ou pelas relações possíveis com outros objetos de nossas cognições anteriores).

6. Sob este aspecto, o conhecimento inferencial, sendo um guia do modo como estabelecemos verdades seguras para nossa conduta, está longe de derivar esta verdade a partir daquilo que se encontra puramente afirmado nas premissas: quando abordamos, um pouco antes, a estrutura conjectural da racionalidade detetivesca (a que certos autores designaram como um “paradigma indiciário”), já vimos que a universalidade presumida de uma cognição discursiva ou inferencial é apenas um horizonte ideal da perfeição do entendimento, muitas vezes contestada pelos novos fatos que aduzimos, a cada novo exame de nossa consciência. Nestes termos, não apenas derivamos o que sabemos daquilo que nossos sistemas de crenças nos permitem inferir, como também a equivocidade e a ignorância cumprem um papel decisivo no modo como estes ajustes entre crenças e fatos são constantemente realizados (o que confere uma importância central ao caráter largamente hipotético de nossas apostas sobre os estados de coisas.    

7. No caso presente, nos interessa avaliar como é que a estrutura de nossas cognições sobre o que é “interior” ou “exterior” à consciência vai se rebater sobre a noção de signo, concebido como um “veículo” destes processos cognitivos: na terceira parte de “Algumas consequências sobre quatro incapacidades”, vemos que Peirce fala da impossibilidade de uma faculdade de pensamento sem o imediato concurso dos signos. Se nossa cognição da interioridade decorre do modo como conhecemos fatos externos e se este último modo de cognição depende de cognições anteriores, o que estamos dizendo é que a estrutura de nosso pensamento se organiza no modo próprio ao dos signos (isto é, como uma relação de remissões sucessivas e potencialmente infinita, dos quais é sempre impossível restituir uma origem absoluta, tampouco determinar um ponto final definitivo).

8. Se nosso pensamento se estrutura sobre uma base inferencial de implicações, é porque esta mesma base reflete uma estrutura mais profunda, que é a do funcionamento dos signos mesmos: assim sendo, há algo como uma implicação entre pensar e significar, no modo como esta concepção semiótica do entendimento se avança para nós, a partir das idéias de Peirce. Isto significa que, na ordem de nossas cognições, aquilo que é “objetivo” ou “subjetivo” só o é assim relativamente a um sistema de referências e de crenças, cuja estrutura de funcionamento é da ordem dos signos, isto é: aparece sob a forma de uma substância ou qualidade individual designada por seu conceito (como no predicado), ou como um fundamento (que pode ser tanto material como conceitual) que aponta para um universo de referências (os objetos supostos de todo signo), finalmente gerando uma lei ou um hábito inferencial ou ainda um significado proposicional (um interpretante). Examinemos esses conceitos em detalhe, em seguida.

9. Na estrutura em que os signos são definidos como “veículos” de um pensamento, a ocorrência de um signo é sempre relativa a outro signo, do mesmo modo que cada cognição que temos é reportada por cognições anteriores: nesse sentido, um signo é inseparável do significado global pelo qual ele se exprime ou, como afirma Peirce, o signo é inseparável do caráter interpretativo do pensamento. Esse aspecto define o interpretante como um componente da definição peirceana do signo: numa perspectiva mais genérica, podemos dizer que essa parte do conceito se reporta ao que chamaremos, mais adiante, de conceito semiótico do significado.

10. Para além de ser relativo a outro signo (que se exprime, na relação com o primeiro como sendo seu significado), o conceito peirceano de signo implica uma alteridade, no plano dos objetos do pensamento: um signo se reporta a outro objeto que não aquele pelo qual ele exprime enquanto tal: há algo externo ao signo, e do qual ele não separa, na condição de signo; Peirce designa esta parte do conceito de signo, como sendo o objeto do signo. Finalmente, naquilo que é próprio ao signo enquanto veículo de representações, são certos aspectos que definem o modo como ele se reporta aos objetos e aos significados que lhe correspondem, e aqui falamos das propriedades ou qualidades intensionais do signo, a que Peirce define como sendo o fundamento de todo signo.

Referências Bibliográficas:
PEIRCE, Charles S. "Questões sobre certas faculdades reivindicadas pelo homem" e “Algumas conseqüências de quatro incapacidades”. In: Semiótica;

Próximas Leituras:
SAUSSURE, Ferdinand de. “Princípios Gerais”. In: Curso de Linguística Geral