sábado, 28 de maio de 2011

Notas de Aula: o fundamento do signo, em Peirce

Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 4 – 23/05/2011
Elementos da Semiose: da confusão entre os veículos e objetos do signo

4.1. O motor lógico da semiose: o fundamento do signo, em Peirce

1. Como vimos no decorrer das últimas sessões, a idéia de “signo” com a qual se pode operar coerentemente, do ponto de vista de uma aproximação analítica aos fenômenos da signficação e da interpretação envolve pelo menos duas concepções distintas de nossa compreensão: se imaginamos que as alternativas lógicas ou linguísticas da semiótica concebem esta noção central a partir de princípios mutuamente incomensuráveis da estrutura da compreensão, então nos pomos de saída num terreno permanentemente dividido da definição mesma sobre esta noção central da disciplina; para muitos de seus comentadores mais importantes, esta diferenciação radical entre a lógica e a linguística aparta, de saída, qualquer idéia de uma unificação teórica das abordagens semióticas. 


"Vejamos esta intervenção de Gilbert Harman: 'a fumaça significa (means)  o fogo e o termos combustão significa fogo, mas não no mesmo sentido de significa. O termo significar é ambíguo. Dizer que a fumaça significa o fogo é dizer que a fumaça é um sintoma, um signo (sinal), uma indicação, uma prova de fogo. Dizer que o termo combustão significa fogo quer dizer que as pessoas usam aquele termo para significar fogo(...)'. A objeção de Harman choca-se com o consensus gentium  da tradição filosófica. Dos estóicos à Idade Média, de Locke a Peirce, de Husserl a Wittgenstein, não só se procurou o fundamento comum entre a teoria do significado linguístico e a teoria da representação 'pictórica', como também entre a teoria do significado e a teoria da referência". Cf. Eco, U. "Signo e inferência": p. 23.

2. Em primeiro lugar, há que se considerar que a noção de “signo” sequer nasceu como patrimônio de um projeto ou programa de disciplinas que pudessem ser originalmente pensadas como “semiótica”: já identificamos antes que a reflexão sobre os signos nasce no contexto de certas disciplinas interpretativas que possuíam como objeto central o exame de fenômenos como os sintomas clínicos; nestes termos, a noçao de “signo” irrompe para as práticas médicas como o correlato de uma certa capacidade adestrada para a observação de fatos exteriors, com base em uma forma de conjectura a que poderíamos chamar de “indiciaria”, tal como a definiu o historiador Carlo Guinzburg.

3. Por outro lado, o desenvolvimento de um saber mais sistemático sobre os signos, no contexto das ciências humanas, no ultimo terço do século passado (em especial, no campo dos estudos sobre fenômenos e processos comunicacionais), decorreu da notória influência que as ciências da linguagem (em especial a fonologia) exerceram sobre largos segmentos da pesquisa etnológica, em especial quando certos ramos da antropologia buscavam examinar os fenômenos de diferentes culturas, a partir de uma chave que prescindisse das variáveis geográficas e históricas de sua sediemntação. No contexto da predominância do método estrutural nas ciências humanas, pode-se dizer que constituiu-se um autêntico “campo do signo”, como matriz para a reflexão sobre espectros consideráveis da cultura contemporânea, a partir da idéia de que estes fenômenos se manifestavam essencialmente, na ordem das significações.


"Para lá de uma função de estar por, todas as outras identidades desaparecem. A única coisa que parece ficar fora de discussão é a atividade da significação. Parece comum aos humanos (...) produzir fatos físicos - ou ter a capacidade de produzir classes de fatos físicos - que estão em substituição de outros fatos ou entidades, físicos ou não, que os humanos não são capazes de porduzir no ato da significação (...). Os processos de significação seriam o artifício indefinível que os seres humanos, em sua implossibilidade de ter o mundo inteiro (real e possível) ao alcance das mãos, poriam em ação para suprir a ausência dos signos.". Cf. Idem: p. 22

4. Estas duas matrizes da concepção sobre o signo, como já se disse, não são facilmente redutíveis uma a outra: significará isto, entretanto, que não seja possível integrá-las, em alguma medida? Tal é uma questão que se põe para as teorias semióticas, desde o momento em que suas categorias passaram a incorporar-se ao vocabulário das humanidades, no ultimo século. Mas esta não é a pergunta que nos motiva, muito embora nosso tema de momento possa ser auxiliar na maneira de enfrentar esta questão. Nos perguntamos, assim, de saída, sobre a unidade do signo, no modo como ela pôde ser concebida, no decorrer de mais de 2.500 anos da reflexão a seu respeito: nosso propósito é examinar com parcimônia os elementos através dos quais o signo pode ser assimilado a esta condição pela qual ele se concebeu como o veículo de nossas cognições e da estrutura de nossas expressões.

5. Ao início do primeiro capítulo de seu Semiótica e Filosofia da Linguagem, Umberto Eco evoca as várias idéias através das quais a noção de signo se formulou, na história do pensamento: não seria exagero postular uma espécie de via antiqua das teorias semióticas como consistindo em todas aquelas manifestações de uma concepção do signo como associada aos processos cognitivos (em última instância, relativos ao modelo conjectural das inferências): ao longo de toda uma série de registros da definição dos signos, ainda vigentes em nossos dias, esta noção de que nossos modos de conhecer a realidade implicam numa dada incompletude manifesta pela idéia de que nosso acesso à totalidade de alguma coisa é sempre mediado provisoriamente pelo signo; assim sendo as inferências naturais (e, em menor escala, os diagramas, os desenhos e o salvos) exprimem, segundo Eco, esta estrutura na qual o signo é um vetor de nossos modos de conhecer uma realidade, na estrutura que é própria à metonínima (isto é, de uma parte para seu todo).


"O que faz pensar numa relação sinedóquica, como se o signo fosse uma parte, um aspecto, uma manifestação periférica de algo que não se mostra em sua totalidade; portanto latente, mas não do todo, porque deste iceberg emerge pelo menos a ponta. Ou então a relação seria metonímica, visto que os dicionários falam do signo (sinal) também no caso de 'qualquer vestígio ou marca visível, deixado por um corpo sobre uma superfície'. Indício de um contato, portanto, mas indício que, através da própria forma, revela algo da forma do impressor". Cf idem: p. 17.

6. Há decerto uma razão histórica para que os signos sejam assimilados nesta condição de elementos do conhecimento e de sua justificação racional, sendo ela, na verdade, um dado da própria genealogia de um saber sobre signos: é que a filosofia da Antigüidade reservara aos signos esta condição de serem veículos de certos tipos de conjecturas pelas quais podemos dizer que alguma coisa é real ou que certos aspectos da conduta possam ser justificados, de modo seguro. Nestes casos, muito embora o emprego das palavras e do discurso verbal possam ser instrumentos importantes desta comunicação, não são estes pensados na condição de “signos” (na história da filosofia, esta assimilação da palavra à significação será feita bem mais tarde).

7. Neste contexto, precisamos nos interrogar sobre o que constitui, enfim, a estrutura do signo que opera na condição de ser o veículo de nossas inferências: um primeiro aspecto a se destacar é o de que tal signo não se define pelo conteúdo substantivo que assume, pois muitas coisas diferentes podem operar a título de “estímulos” para os processos inferenciais em que estas eventualmente participam. Neste caso, o caráter de significação que elas assumem é necessariamente relativo ao contexto da interpretação na qual estas substâncias jogam enquanto partes do signo. Isto significa apenas que, muito embora uma mancha de sangue no tapete de meu quarto possa funcionar como elemento disparador de uma série de inferências que eu posso praticar sobre sua ocorrência (o que a causou? De que é feita? Há quanto tempo está ali? a quem ou ao quê pertencia?), em nenhum sentido logicamente válido deve ser assumida como “sendo” um signo em si mesma.

8. Ao fim da exposição sobre as relações entre significação e inferência, examinamos o modo como Peirce investe contra o assim chamado “espírito do cartesianismo” na filosofia moderna, ao criticar o alcance de supostas faculdades inerentes ao espírito humano: em seu lugar, Peirce avança a idéia de uma implicação entre a estrutura das ações mentais que caracterizam o regime inferencial do entendimento e a noção mesma de “signo”, que dará origem às novas concepções sobre o conhecimento que ele avançará, a partir dali.

9. Se nosso pensamento se estrutura sobre uma base inferencial de implicações, é porque esta mesma base reflete uma estrutura mais profunda, que é a do funcionamento mesmo dos signos, isto é: aparece sob a forma de uma substância ou qualidade individual designada por seu conceito (como no predicado), ou como um fundamento (que pode ser tanto material como conceitual) que aponta para um universo de referências (os objetos supostos de todo signo), finalmente gerando uma lei ou um hábito inferencial ou ainda um significado proposicional (um interpretante).

10. Nos interessa examinar, em especial, a noção mesma de “fundamento” do signo, pois é nela que se concentram alguns dos problemas mais importantes da definção peirceana do signo: em primeiro lugar, o fato de que muitos dos comentadores da tradição semiótica frequentemente confundem este estrato com o conceito mesmo do signo. O “fundamento” do signo constitui, para Peirce a face materialmente mais notável dos processos de significação, pois manifestam a aspectualização que é inerente aos modos pelos quais a inferência constrói relações entre segmentos da experiência e do entendimento. Segundo Peirce, esta materialidade aspectual é apenas uma das referências que todo pensamento constrói, na base de uma inferência.


"Ora, um signo tem, como tal, três referências: primeiro, é um signo para algum pensamento que o interpreta: é um signo de algum objeto ao qual, naquele pensamento, é equivalente: terceiro, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o põe em conexão com seu objeto". Cf. Peirce, “Algumas consequências…”: p. 269,270.

11. Na estrutura em que os signos são definidos como “veículos” de um pensamento, a ocorrência de um signo é sempre relativa a outro signo, do mesmo modo que cada cognição que temos é reportada por cognições anteriores: nesse sentido, um signo é inseparável do significado global pelo qual ele se exprime ou, como afirma Peirce, o signo é inseparável do caráter interpretativo do pensamento. Esse aspecto define o interpretante como um componente da definição peirceana do signo: numa perspectiva mais genérica, podemos dizer que essa parte do conceito se reporta ao que chamaremos, mais adiante, de conceito semiótico do significado.

12. Para além de ser relativo a outro signo (que se exprime, na relação com o primeiro como sendo seu significado), o conceito peirceano de signo implica uma alteridade, no plano dos objetos do pensamento: um signo se reporta a outro objeto que não aquele pelo qual ele exprime enquanto tal: há algo externo ao signo, e do qual ele não separa, na condição de signo; Peirce designa esta parte do conceito de signo, como sendo o objeto do signo. Finalmente, naquilo que é próprio ao signo enquanto veículo de representações, são certos aspectos que definem o modo como ele se reporta aos objetos e aos significados que lhe correspondem, e aqui falamos das propriedades ou qualidades intensionais do signo, a que Peirce define como sendo o fundamento de todo signo.

Referências Bibliográficas :
ECO, Umberto. « Signo e inferência ». In : Semiótica e Filosofia da Linguagem ;
PEIRCE, Charles S. « Algumas consequências de quatro icapacidades ». In : Semiótica.

Próximas Leituras :
BARTHES, Significado/significante ». In : Elementos de Semiologia ;
ECO, Umberto. "Signo e inferência". In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;
VOLLI, Ugo. « Signo ». In : Manual de Semiótica.

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