quinta-feira, 19 de maio de 2011

Notas de Aula: o logos semiósico do entendimento, em Peirce

Queridos,

Peço que me desculpem pélo atraso no envio das últimas notas de aula, prometo que tudo estará sanado até o final do dia de hoje. Seguem agora as notas da aula de segunda-feira, sobre as relações entre pensamento e inferência, nos textos anti-cartesianos de Charles S. Peirce.

Divirtam-se,

Benjamim


Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 3 – 16/05/2011
A Estrutura Elementar da Compreensão

3.3. Signos, Inferência e Entendimento: o logos semiósico, em Peirce

1. Estabelecidas até aqui as condições em que o exame dos signos nos identifica com certas concepções acerca de uma hipotética “estrutura elementar da compreensão”, nos resta examinar como é que em cada uma das duas concepções sobre regimes do entendimento se deixa entrever uma idéia precisa sobre a estrutura mesma do signo, enquanto elemento motriz de uma interpretação do mundo: apenas a título de um início de percurso, precisamos nos interrogar, por exemplo, que tipo de definição sobre o signo seria própria a um modelo inferencial da compreensão. Sendo este o tema que nos engaja agora, tomando de partida as idéias do filósofo e lógico americano Charles Sanders Peirce (1839/1914).

2. Nesta ordem de problematizações, primeiramente temos que considerar o modo como se origina um postulado semiótico para a lógica, em especial no contexto da rejeição de duas idéias que matriciaram durante muitos séculos a interrogação sobre as estruturas mais profundas de nossa consciência (isto é, de nossa relação com o mundo e com nós mesmos). Assim sendo, esta exploração lógico-semiótica dos temas da filosofia da consciência (originária, ao menos nos tempos modernos, da influência do cartesianismo, a partir do século XVII) tem por fontes principais a postulação de duas supostas faculdades inerentes ao nosso modo de intelecção do mundo, a saber: o conhecimento de nós mesmos e o conhecimento do mundo exterior. Na perspectiva do cartesianismo, conhecemos o mundo exterior como conseqüência de um conhecimento de nossa própria interioridade (este é, por exemplo, o significado da implicação entre pensar e existir, proposta nas Meditações, de Descartes).

3. Pois bem, em primeiro lugar, numa perspectiva semiótica, não podemos partir da suposição de que o conhecimento da nossa interioridade seja uma faculdade individual do sujeito que conhece: não conheço meu eu, independentemente de meu conhecimento sobre fatos externos (isto é algo que as escolas contemporâneas da psicologia e da psicanálise já puderam firmar como o problema da gênese da subjetividade, na “fase do espelho”, por exemplo).

4. Se a ocorrência desta interioridade fosse algo absolutamente restrito à ordem do indivíduo, jamais teríamos o que dizer de nós mesmos a outrem, de modo a nos fazermos entender. A tese sobre a “interioridade do eu” se confronta com a da “comunicabilidade” essencial da subjetividade. Peirce se refere a esta impossibilidade como sendo uma interdição à faculdade da introspecção, isto é, não temos nenhum conhecimento direto de nós mesmos, pois quando falamos de um “eu”, para nomear um centro de nossas experiências, nos valemos da derivação da estrutura pela qual conhecemos fatos externos. Em seus textos anticartesianos, Peirce evoca este pequeno drama da construção da subjetividade por parte da criança que move os corpos do mundo em torno de si, lentamente descobrindo que esta ação é relativa a seu próprio corpo, até o ponto da descoberta da linguagem.


"Ninguém questiona que quando uma criança ouve um som, ela não pensa em si mesma na condição de ouvinte, mas sim no sino ou em outros objetos na condição de soantes. E o que acontece quando ela quer mover uma mesa? Será que pensa em si mesma como desejosa desse ato ou apenas na mesa como algo adequado para se mover? Está fora de dúvida que é o segundo pensamento que nela ocorre; e até que seja provada a existência de uma autoconsciência intuitiva, deve-se considerar como uma suposição arbitrária  e sem fundamento a resposta que aponte para a primeira destas alternativas.". Cf.  Peirce, “Questões sobre certas faculdades... » : p. 248,249.

5. Por sua vez, nosso conhecimento dos fatos externos não é igualmente direto, ou dado aos nossos sentidos, isto é, não possuímos a faculdade da intuição (como uma cognição imediata) daquilo que é exterior à nossa consciência: o que sabemos sobre a exterioridade é sempre algo derivado de proposições anteriores, é sempre algo que se coloca na estrutura implicativa que é inerente aos modos da predicação proposicional (isto é, conhecer objetivamente alguma coisa nunca é algo que se dê de modo absolutamente determinado pelos objetos exteriores de nossa consciência, mas pelos conceitos que formamos e sedimentamos num sistema de crenças, a seu respeito, ou pelas relações possíveis com outros objetos de nossas cognições anteriores).

6. Sob este aspecto, o conhecimento inferencial, sendo um guia do modo como estabelecemos verdades seguras para nossa conduta, está longe de derivar esta verdade a partir daquilo que se encontra puramente afirmado nas premissas: quando abordamos, um pouco antes, a estrutura conjectural da racionalidade detetivesca (a que certos autores designaram como um “paradigma indiciário”), já vimos que a universalidade presumida de uma cognição discursiva ou inferencial é apenas um horizonte ideal da perfeição do entendimento, muitas vezes contestada pelos novos fatos que aduzimos, a cada novo exame de nossa consciência. Nestes termos, não apenas derivamos o que sabemos daquilo que nossos sistemas de crenças nos permitem inferir, como também a equivocidade e a ignorância cumprem um papel decisivo no modo como estes ajustes entre crenças e fatos são constantemente realizados (o que confere uma importância central ao caráter largamente hipotético de nossas apostas sobre os estados de coisas.    

7. No caso presente, nos interessa avaliar como é que a estrutura de nossas cognições sobre o que é “interior” ou “exterior” à consciência vai se rebater sobre a noção de signo, concebido como um “veículo” destes processos cognitivos: na terceira parte de “Algumas consequências sobre quatro incapacidades”, vemos que Peirce fala da impossibilidade de uma faculdade de pensamento sem o imediato concurso dos signos. Se nossa cognição da interioridade decorre do modo como conhecemos fatos externos e se este último modo de cognição depende de cognições anteriores, o que estamos dizendo é que a estrutura de nosso pensamento se organiza no modo próprio ao dos signos (isto é, como uma relação de remissões sucessivas e potencialmente infinita, dos quais é sempre impossível restituir uma origem absoluta, tampouco determinar um ponto final definitivo).

8. Se nosso pensamento se estrutura sobre uma base inferencial de implicações, é porque esta mesma base reflete uma estrutura mais profunda, que é a do funcionamento dos signos mesmos: assim sendo, há algo como uma implicação entre pensar e significar, no modo como esta concepção semiótica do entendimento se avança para nós, a partir das idéias de Peirce. Isto significa que, na ordem de nossas cognições, aquilo que é “objetivo” ou “subjetivo” só o é assim relativamente a um sistema de referências e de crenças, cuja estrutura de funcionamento é da ordem dos signos, isto é: aparece sob a forma de uma substância ou qualidade individual designada por seu conceito (como no predicado), ou como um fundamento (que pode ser tanto material como conceitual) que aponta para um universo de referências (os objetos supostos de todo signo), finalmente gerando uma lei ou um hábito inferencial ou ainda um significado proposicional (um interpretante). Examinemos esses conceitos em detalhe, em seguida.

9. Na estrutura em que os signos são definidos como “veículos” de um pensamento, a ocorrência de um signo é sempre relativa a outro signo, do mesmo modo que cada cognição que temos é reportada por cognições anteriores: nesse sentido, um signo é inseparável do significado global pelo qual ele se exprime ou, como afirma Peirce, o signo é inseparável do caráter interpretativo do pensamento. Esse aspecto define o interpretante como um componente da definição peirceana do signo: numa perspectiva mais genérica, podemos dizer que essa parte do conceito se reporta ao que chamaremos, mais adiante, de conceito semiótico do significado.

10. Para além de ser relativo a outro signo (que se exprime, na relação com o primeiro como sendo seu significado), o conceito peirceano de signo implica uma alteridade, no plano dos objetos do pensamento: um signo se reporta a outro objeto que não aquele pelo qual ele exprime enquanto tal: há algo externo ao signo, e do qual ele não separa, na condição de signo; Peirce designa esta parte do conceito de signo, como sendo o objeto do signo. Finalmente, naquilo que é próprio ao signo enquanto veículo de representações, são certos aspectos que definem o modo como ele se reporta aos objetos e aos significados que lhe correspondem, e aqui falamos das propriedades ou qualidades intensionais do signo, a que Peirce define como sendo o fundamento de todo signo.

Referências Bibliográficas:
PEIRCE, Charles S. "Questões sobre certas faculdades reivindicadas pelo homem" e “Algumas conseqüências de quatro incapacidades”. In: Semiótica;

Próximas Leituras:
SAUSSURE, Ferdinand de. “Princípios Gerais”. In: Curso de Linguística Geral

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