Queridos,
Seguem abaixo as notas referentes às últimas exposições do curso, sobre o tema das modalidades inferenciais da compreensão, tomando-se o caso da racionalidade clínica e detetivesca, à luz do texto de Carlo Guinzburg.
Divirtam-se,
Ad,
Benjamim
Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 3 – 13/10/2010
Os Signos e a Estrutura Elementar da Compreensão
3.1. Por uma “ontologia da dependência”: significação e racionalidade implicadora
- Se tomarmos em conta a questão dos signos, proposta nos termos de sua evocação na grande linha das disciplinas e dos problemas sob as quais esta noção veio a ser identificada no decurso da história do pensamento, notaremos que esta idéia (o conceito mesmo de “signo” e a interrogação sobre seu funcionamento) se manifestou na forma de ao menos duas concepções principais sobre os fenômenos da compreensão e da interpretação, formas estas que se desenvolveram de maneira a se tornarem irredutíveis uma à outra: ou bem o signo se manifesta como questão ligada à pergunta sobre a estruturação formal do pensamento e do raciocínio discursivos, ou então como fenômeno característico dos modos pelos quais nos fazemos entender sobre nossas intenções ou propósitos, através dos meios pelos quais estes estados podem ser comunicados. Ou bem os signos encarnam a estrutura mediante a qual nosso pensamento toma as coisas em causa, ou ainda é parte do sistema pelo qual intermediamos intencionalmente estas ordens de relações entre nossas idéias e as coisas.
- Em suma, estamos no domínio mais genérico dos valores associados aos signos enquanto objetos de uma investigação sobre o espírito humano, seja do ponto de vista de sua compreensão enquanto “veículo lógico”, ou como propriedade do discurso intencional, da ordem do “querer dizer”, do propósito comunicacional: assim sendo, antes mesmo de examinarmos em detalhes a definição do conceito de signo, em cada uma de suas escolas (seja aquela que define a lógico-pragmática, seja aquela mais próxima da lingüística), precisamos avaliar os fundamentos de cada uma destas concepções, com respeito ao modo como elaboram, cada uma delas, a relação entre os signos e as estruturas elementares de nossa compreensão. Propomos começar esta exploração, a partir da admissão de que os signos constituem um elemento auxiliar à interpretação de questões de fato e dos princípios que regem este segmento de nossas faculdades interpretativas.
- Correndo o risco de antecipar um problema mais inerente à discussão sobre o conceito de significado, digamos que um dos aspectos do modo como compreendemos realidades diz respeito ao estatuto mesmo que assume para nós a admissão de que algo é, ou então, de que “há algo” sobre o que pensamos ou falamos ou mesmo sentimos e percebemos. Mais ainda, há uma maneira pela qual as teorias semióticas abordaram esta questão (a que poderíamos chamar de “pergunta sobre o ser”: um objeto no mundo não vale, portanto, como o que ele é, no plano mais elementar de sua manifestação puramente individual, mas justamente pelos modos e condições nas quais esta ocorrência pode ser correlacionada, comparada, comensurada com respeito a alguma outra ou a uma série ou classe delas.
- O “que há” é sempre decorrência da correlação deste algo (sobre o qual falamos, um aliquid) àquilo a que nos reportamos para auxiliar na determinação de sua própria realidade: aquilo que há estará sempre na dependência de um outro algo (um aliquo), seja de que natureza ele for (seja da ordem de um existente, seja da ordem de ser da razão, uma idéia ou conceito). Ora, o que se deslinda aqui, como um horizonte semiótico da compreensão é o fato de que os objetos de nossa experiência dificilmente podem ser concebidos na ordem de uma absoluta originariedade (sua razão de ser não está neles mesmos), mas derivada de um princípio de sua irredutível relatividade com respeito a tudo o mais de outro.
- Nas imensas discussões entre os “doze zangados jurados” de um belíssimo filme de Sydney Lumet, poderemos encontrar um luminoso exemplo de como a questão sobre o conhecimento de uma questão de fato nos exige, por vezes, uma certa atitude de suspeita com respeito aos fundamentos de nossa certeza acerca daquilo que percebemos: no caso em questão, trata-se de desconfiar das condições físicas do exame dos fatos que uma testemunha alega ter, ao afirmar que presenciou um crime com seus próprios olhos (e que, em se confirmando verdadeira, pode levar um garoto de 18 anos à condenação pela pena capital, pelo fato de haver matado seu próprio pai). Pois bem, o exame sobre a razoável Duvida que pode haver sobre a acuidade visual deste testemunho é ilustrativo do qual pouco fundamentada podem ser nossas impressões mais certas e indubitáveis.
Sydney Lumet, 12 Angry Men (1956)
- Detenhamo-nos um pouco mais, entretanto, sobre a relação mesma que é constitutiva do modo como conhecemos fatos: acordo de manhã e, da janela de meu quarto, noto que o asfalto da rua em frente tem um aspecto molhado (ele brilha especialmente, em reação à luz matinal). Cabe que nos perguntemos sobre em que sentido esta experiência constitui-se como “fato” com o qual me defronto, assim que desperto: será ele algo de puramente objetivo e independente de minhas inclinações em pensar ou configurar esta experiência, em vários de seus níveis? Será ela assim independente de minhas concepções (e mesmo de minhas inclinações involuntárias) a respeito da ação da luz sobre superfícies? Alheia a meus costumes de perceber quando choveu, dado um certo aspecto manifesto do efeito da água sobre superfícies? Mediante a constatação do fato de que choveu, não estarei eu pronto a assumir uma série de ações decorrentes deste fato? Em cada uma destas admissões, não haveria uma certa noção subjacente de que os fatos não valem por si mesmos, mas pelo que comandam de nossa capacidade para coligar eventos, como parte de uma racionalidade cognitiva?
- Se estas admissões são justificáveis, assim sendo, um fato depreenderá sua individualidade não de sua singular ocorrência, mas em razão de poder se conectar com outro fato (semelhante ou dessemelhante) ou com aspectos de fatos (qualidades e propriedades parciais que sejam suficientes para se pensar) ou mesmo com as idéias que estes fatos de algum modo ilustram. A modalidade de compreensão que se exprime tendo por objeto não os fatos em si, mas as relações entre eles (diríamos, que exprime o modo de conhecer através de relações entre proposições acerca de fatos) poderia ser chamada de uma modalidade inferencial da compreensão: no caso do sujeito que examina o ambiente e pensa sobre a ação de uma força natural sobre ele, a partir de certos aspectos de sua manifestação presente (o asfalto molhado que significa ou indica a chuva como sua causa), as inferências se definem precisamente como um modo de conhecer coisas ou estados de coisas que se concebem, por sua vez, como um tipo específico de relação entre termos (ou entre proposições que falam destes termos, seja na condição de sujeitos ou de predicados). Ora, é precisamente na ordem inferencial da compreensão que podemos notar como uma certa concepção acerca do signo se torna central para a caracterização de uma concepção discursiva do pensamento.
- E o que constituiria, em suma, um tal pensamento que se define por ser “discursivo”? O que significa incorporar a noção de discursividade à ordem do entendimento que temos daquilo que nos é exterior (ou mesmo ainda daquilo que se passa em nossa interioridade, como no caso de nossos sentimentos e impressões subjetivas)? Em nosso modo próprio de explorar esta questão, nos valemos do que certos autores definem como sendo algo de essencial à noção mesma de “signo” (sobretudo quando ele é considerado na perspectiva de uma unidade que coliga termos, que faz juntarem-se aquilo que serve pra disparar nossas impressões e o conteúdo que a elas atribuímos) e que se deixa incorporar no modo próprio de sua definição, isto é: a idéia de que o signo caracteriza-se, nos dizeres de Roman Jakobson, como uma “relação de remetimento” (relation de renvoi). Assim sendo, o que caracteriza a discursividade como aspecto de nosso modo de pensar é que não nos detemos sobre os objetos individuais, mas sempre os restituímos a uma relação possível com outras ordens de coisas.
- Ao concebermos, enfim, o pensamento como enraizado na noção de discursividade, estamos estabelecendo a dependência entre o que definimos como sendo um pensamento e o caráter de remissão que é próprio, por sua vez, à definição mesma do signo: nos termos em que Peirce define a importância de uma abordagem semiótica dos processos inferenciais, não há cogitação possível na ausência de signos, já que pensar é colocar o que está presente em relação com um ausente, como veremos logo a seguir.
- Façamos uma breve digressão ilustrativa, para tentarmos vislumbrar com mais clareza o lugar do conceito de signo, no contexto das investigações sobre processos cognitivos e sua materialização em padrões discursivos: pensemos no caso exemplar da lógica dedutiva própria à atividade detetivesca, isto é, própria aos gêneros de raciocínio que visam estabelecer, com base no exame de fatos e no exercício de certas competências inferenciais, a ordem dos fatos que gerou um crime. Enfim, tentemos tomar em causa a prática detetivesca como cristalização de uma modalidade de semiótica que é própria ao modo pelo qual as vertentes lógicas desta disciplina colocaram em questão a noção mesma do signo.
- O exemplo da lógica detetivesca serve a dois propósitos iniciais de nossa exposição, a saber, falar do conceito de signo enquanto veículo lógico (tendo como caso exemplar, o conceito de signo em Peirce) e, mais tarde, o exame da predominância do que chamamos de “paradigma inidicário”, um fenômeno próprio a uma certa teoria do conhecimento, no modo como a caracterizam certos historiadores das idéias: trata-se de uma certa forma de epistemologia associada a um gênero de racionalidade que opera, por sua vez, a partir do que poderíamos chamar de “vestígios”, e que tem por objeto precisamente esta capacidade de restituição de um quadro de fenômenos, estabelecido a partir de um raciocínio feito em retrospecto (isto é, dos conseqüentes para os antecedentes, dos resultados para suas causas). Este modo de raciocinar é, por sua vez, muito próprio a um certo terreno das cogitações, que se baseia em suposições ou apostas hipotéticas, como é o caso da clínica médica, da arqueologia e da história e (por que não?) daquilo que fazem os detetives, ao solucionar crimes enigmáticos.
- Para além disto, há o fato de que os elementos que esta forma de cogitação toma em causa são, no mais das vezes, detalhes, aspectos a princípio imperceptíveis a uma sensibilidade não treinada para trazê-los à luz, o que identifica as descobertas detetivescas com certos aspectos do diagnóstico clínico. De fato, a relação entre a clínica e a criminalística se propõe a alguns como a de uma linhagem do raciocínio feito a partir de signos indexicais, que é uma espécie de primeiro campo de provas de uma teoria semiótica.
“Vimos, portanto, delinear-se uma analogia entre os métodos de Morelli, Holmes e Freud (...). Nos três casos, pistas talvez infinitesimais permitam captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes, signos pictóricos (no caso de Morelli). Como se explica esta tripla analogia? A resposta, à primeira vista, é muito simples. Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura. Nos três casos, entrevê-se o modelo da semiótica médica: a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo (...). Mas não se trata simplesmente de coincidências biográficas. No final do século XIX – mais precisamente, na década de 1870-80 – começou a se afirmar nas ciências humanas um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica.” Ginzburg, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, pp. 143,151.
- Tomemos agora em questão, para começar, o caso daquele que é por muitos reconhecido como o primeiro dos grandes detetives das narrativas literárias, o Dupin de Edgar Allan Poe (herói dos contos “Os Crimes da Rua Morgue” e “A Carta Roubada”): vejamos nele o modo como se articulam, na resolução de determinadas situações (como a solução de um crime ou a decifração do que se passa no interior de uma mente), a atitude analítica que preside a observação dos fatos positivos, os quadros de pressuposto que servem de norma ou de regra para seu enquadramento, e as soluções e conclusões a que se pode chegar, através destas cogitações. Ao descrevermos esta ordem na qual os fatos são interpretados, por uma mente analítica, introduzimos necessariamente o lugar dos signos na estrutura inferencial que é própria ao pensamento discursivo.
- Poe, “Os Crimes da Rua Morgue”: pp. 86,87,88.
- Afastado o fato de que a situação apresentada pelo conto de Poe tem aspectos de uma fantasia narrativa sobre o alcance e as capacidades de uma mente interrogadora, o que identificamos na economia intelectual que conduz Dupin a sondar a mente de seu companheiro, enquanto perambulam pela noite de Paris, não tem nada de excepcionalmente incompreensível ou mágico: trata-se de uma faculdade que nos é cognitivamente inerente, a saber, a de reportarmo-nos aos fatos, não tomando-os na condição de dados absolutamente individuais para nossa consciência (em algum momento anterior deste curso, dissemos que os objetos de nossa cognição não são absolutamente individuais porque não nos são absolutamente externos, isto é, não são independentes daquilo com o que podemos correlacioná-los, no repertório de nossas cognições anteriores).
- A sagacidade cogitadora de Dupin é assim apenas a imagem (decerto hiperbólica) do modo como nos equipamos para falar de fatos aparentemente singulares: alguém a que conhecemos, com alguma intimidade, olha demoradamente para o chão; decerto, tem razões para tanto, mas em nossa mente não nos sossegamos em simplesmente constatar que algo se passa para este segundo; po-mo-nos imediatamente a conjecturar (e certos autores falam de um modelo conjectural inerente à interpretação de pistas detetivescas) sobre o que se passa com ele. E assim procedendo, pomos em jogo toda uma ordem de pressupostos que temos sobre o caráter deste objeto de nossa cogitação. O que fazemos, no jargão que se tornou próprio da semiótica de Peirce, é tentar determinar o resultado (isto é, o significado deste fato particular, como conclusão de um raciocínio completo), a partir de sua regra (que se exprime como uma ordem dos pressupostos que nosso conhecimento da questão nos permite estabelecer como causas de seu comportamento) e do caso (isto é, o fato propriamente dito e observado).
Leitura Obrigatória:
Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas e Sinais.
Poe, Edgar Allan Poe. “Os Crimes da Rua Morgue”. In: Histórias Extraordinárias.
Próximas Leituras:
Goffman, Erving. “Introdução”. In: A Representação do Eu na Vida Cotidiana;
Volli, Ugo. “Interpretação”. In: Manual de Semiótica.
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