sábado, 14 de maio de 2011

Notas da última aula: O Entendimento Textual e o "Princípio do Sistema"

Queridos,

Desculpem-me o atraso, mas seguem finalmente as minhas anotações referentes à última exposição do curso, sobre os regimes da compreensão textual e os princípios nos quais operam as modalidades de significação que lhe são próprias (o chamado "princípio do sistema").

Ad,

Benjamim



Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula no 3 (09 e 11/05/2011)
A Estrutura Elementar da Compreensão

3.2. Entendimento textual e o “princípio do sistema”

1. Na caracterização dos modos mais elementares da compreensão, aos quais se reporta uma teoria dos signos, falamos predominantemente de nossa consciência sobre relações entre fatos: enfim, falamos do modelo inferencial, e da maneira como nele se deixa implicar a idéia de uma necessária dependência – de fundamento lógico - entre ocorrências, no modo distinto como determinamos aquilo que, para uma consciência, é o caso.

2. Em outros regimes da compreensão, entretanto, o problema que se põe ao espírito não diz respeito àquilo “que há” (não corresponde a uma pergunta sobre estados de fato e regimes de crenças subjacentes), mas por uma outra espécie de percurso orientador de nosso entendimento (e das funções aí cumpridas por entidades tais que os signos). Em termos, há modos de compreensão que reconhecem em eventos como textos, sentenças, palavras, discursos: nestes termos, a modalidade quer define a compreensão de tais coisas não é exclusivamente derivada de um conhecimento sedimentado por costumes prévios sobre estados de coisas ou de idéias abstratas que podem ser explicadas por seus correlatos semânticos, mas de toda uma outra ordem de fatores que nos cumpriria examinar, à parte.

3. É bem verdade, por outro lado, que em certas perspectivas das teorias da significação, ainda se concebe o problema da compreensão textual como enormemente fundada em considerações sobre o capital inferencial daqueles que põem os textos em jogo: nas vertentes da semiótica que apostam na atividade da leitura como matriz dos processos de significação, não hã como conceber aquilo que define a atividade de compreender um texto, por parte do leitor, sem levar em conta os processos nos quais ele joga inferencialmente com as relações entre o percurso linear da leitura e as cogitações sobre diversos aspectos do conteúdo ou da significação (factual, moral, estética, narrativa) que ele pode atribuir a estes segmentos de escritura.

4. No texto de Ugo Volli sobre a interpretação, por exemplo, há um entendimento implícito sobre o papel do intérprete, nos modos que lhe cabem de acionar os vários aspectos da significação de uma obra textual (como um romance, por exemplo): é evdente que, neste contexto específico, ainda estamos localizados naquilo que caracteriza, ao menos em parte, uma concepção inferencial dos processos de comunicação e significação. Eles serão decisivos , especialmente quando formos confrontados com o horizonte das teorias pragmáticas da interpretação, por exemplo, na obra tardia de Umberto Eco.

“Quem lê um texto é continuamente chamado a apresentar hipóteses sobre o significado a ser atribuído à superfície expressiva que tem diante de si. Por outro lado, na leitura de um texto narrativo, o intérprete vê-se constantamente antecipando os movimentos do autor, imaginando o que irá acontecer nas fases seguintes da narrativa. Além disso, conforme vimos, para direcionar a interpretação de texto no sentido desejado, o autor apresenta uma série de hipóteses sobre o comportamento interpretativo do leitor-modelo. Para descrever o jogo a dois no qual estão envolvidos o autor e o leitor de um texto, costuma-se empregar a metáfora da partida de xadrez, na qual cada jogador tem que antecipar os movimentos do adversário com base na imagem formada sobre o estilo de jogo do outro; a única diferença com o xadrez, talvez, é que no caso de uma ‘boa’ leitura ambos os jogadores estão interessados em fazer com que o outro vença (não é por obra do acaso que se fala de cooperação interpretativa). Cf. Volli, “Interpretação”: pp. 153,154

5. Ainda assim, estamos falando de um regime da compreensão para o qual os objetos que significam assim o fazem na condição de se constituírem como “textos”: que se entenda, em primeiro lugar, que nos reportamos a um tipo de manifestação que (uma vez definida enquanto tal) se apresenta em substâncias significantes que são enormemente variáveis entre si; é evidente que reconhecemos usualmente esse tipo de manifestação em casos bem específicos de materiais aos quais chamamos mais naturalmente de “textos”, como os enunciados verbais, as formas narrativas, as estratégicas retóricas e coisas que tais. Do ponto de vista de sua expressão, entretanto, as manifestações de um sentido textual podem manifestar-se em componentes semióticas outras, tais como o gesto, a imagem, a fisionomia, a expressão corporal: um primeiro aspecto de uma abordagem semiótica da experiência que define um regime textual do entendimento é o de que as matérias que servem para significar, neste regime específico, podem funcionar como enunciados sem que se definam com uma articulação de palavras, por exemplo.

6. Em comparação com os modos inferenciais, por exemplo, a atividade que caracteriza a compreensão textual implica em um outro regime pelo qual se dá a articulação daquilo que se manifesta como matéria para o entendimento: na inferência, aquilo que é assumido como significativo se manifesta, em primeiro lugar, como um “fato”, que pode ser tomado em causa na sua relação com o que quer que seja, em função de critérios vários (aspectos semelhantes, percursos causais, relações entre concretude e abstração, dentre outro, exemplificação, dentre outros); a modalidade relacional que caracteriza o modo como a significação se instaura nesses casos, define-se como uma implicação (na forma de um logos filônico, como diria Umberto Eco). Ainda assim, já vimos que a atividade interpretativa que põe esses textos em jogo trabalha igualmente com certas assunções factuais, fazendo-os funcionar relativamente a uma série de assunções e pressupostos – tanto no que respeita a ordem intramundana do texto (seus desfechos) quanto no que respeita suas relações com o mundo conceitual do próprio leitor.

7. Por seu turno, o que constitui uma manifestação qualquer enquanto texto (ou como signo que se manifesta a uma compreensão que o toma como parte de um texto) implica uma outra maneira de articular os princípios relacionais do signo: a manifestação de certas substâncias variadas (sons, gestos, imagens) ganha o caráter de significação que interessa a um certo ramos das teorias semióticas, na condição de ser assumida enquanto elementos de um sistema (no jargão de uma certa escola das teorias semióticas, ela transforma essas matérias em formas significantes, constitutivos de um tal sistema ou estrutura); assim sendo, o princípio de um entendimento textual não toma os fatos, na sua condição de dependência para com outros, de modo a torná-lo compreensível, mas estabelece a relação de dependência de uma ocorrência significante qualquer com um sistema de convenções (por isso mesmo é que eles exemplificam outra modalidade da estrutura elementar da compreensão, ao qual chamamos doravante de “princípio do sistema”).

8. Como já dissemos, diferentemente do princípio no qual funcionam as inferências, a compreensão textual não requisita uma experiência contínua e sedimentada de correlação entre ocorrências do mundo, para firmar os modos como reconhecemos cada uma delas na sua relativa singularidade: assim sendo, compreender um texto, não significa correlacionar as ocorrências concretas que o constituem materialmente com ocorrências anteriores, de modo a implicá-las em seu valor recíproco; ao invés disto, pede que reconheçamos e subscrevamos a manifestação singular de uma expressão (ou de algo que assume esta forma, dado um certo modo de compreensão) como sendo a manifestação mais concreta (ou ainda, amostragem) de um modelo geral, cuja fundamento último é da ordem de uma convenção.

9. Ao menos num nível mais elementar da caracterização deste segmento de uma estrutura elementar da compreensão que tem por objetos as formas textuais, o melhor modo de explanar este princípio do sistema talvez seja aquele que chama em causa a noção de “código”, no modo como Umberto Eco e Roland Barthes assimilaram esta idéia para explicar os fundamentos de vastas porções do fenômeno da significação: neste caso, já vimos antes que, ao assumir que um segmento determinado dos fenômenos culturais (como os gestos, a expressão corporal, o campo das imagens, a música popular, o cinema, dentre tantos outros) pode ser assimilado à ordem da comunicação, as teorias semióticas fixam justamente na admissão de um sistema das significações subjacente a cada uma destas manifestações a própria razão de ser de uma investigação sobre os processos culturais, em geral.

10. Em especial, quando examinarmos com mais vagar as concepções de signo, nas vertentes mais associadas à linguística, ali vemos emergir com força a noção de que o sentido característico das expressões verbais é uma decorrência dos poderes constringentes de um código ou convenção, características, por sua vez, do sistema da lingua. E é assim que a comunicação ordinária de pensamentos, os efeitos trópicos do discurso da poesia, a comunicação por gestos, os ritos e costumes, os símbolos religiosos, enfim, um universo inteiro de manifestações da cultura pode ser assimilado, do ponto de vista de seu estudo sistematico, ao princípio do sistema ou à idéia dos códigos correlativos a cada uma destas manifestações.

11. Em boa medida, o modelo da compreensão que faz apelo à idéia de código, nas teorias da comunicação verbal, se manifesta em relativa independência daquele que caracteriza as modalidades inferenciais de nossa competência ao lidarmos com signos. Em primeiro lugar, devemos considerar uma importante diferença que se estabelece entre os dois modos do entendimento que se manifestam no princípio da dependência e no do sistema: no que respeita uma definição sobre a natureza mesma dos signos, em cada destas perspectivas, esta distinção entre os dois princípios atualiza uma distinção, própria à filosofia dos signos dos filósofos medievais (sobretudo, Agostinho), e pela qual aprendemos a diferenciar os signos naturais (supostamente próprios ao modo inferencial) e os signos artificiais (ou convencionais), por sua vez característicos, mas não exclusivos, da comunicação lingüística.

12. Examinemos esta ordem de questões, a partir de exemplos mais concretos: à luz da suposição que já podemos fazer sobre como compreendemos fatos atmosféricos, sintomas e pistas (que são exemplos clássicos de uma compreensão inferencial), como é possível que saibamos (como, de fato, sabemos), o que significam expressões como estas?

Als das kinder kinder war...
Alons enfants de la patrie, le jour de gloire est arrivé!

13. As diferenças entre as duas modalidades da compreensão não são apenas da ordem dos objetos a que elas se reportam (fatos, de um lado, textos, de outro), mas também da ordem das atividades que são requisitadas, uma vez que estejamos operando em cada uma delas: o tipo de compreensão característico nas modalidades inferenciais é mais apropriado à produção de conclusões (sob a forma de diagnósticos, prognósticos, juízos retrospectivos ou projetivos, todos dotados de certa universalidade ou de certa factualidade); no caso da interpretação textual, o que fazemos é de-cifrar uma mensagem, no sentido etimológico mesmo da expressão, isto é, atribuir seu valor, mediante a decomposição de uma ocorrência, em correlação com uma cifra (isto é, um padrão de comparação, que é fundado em um sistema de regras), e que funciona como sendo seu correlato estrutural – ao modo de uma gramática.

14. No caso das modalidades textuais de compreensão, não se supõe (ao menos, em geral) que as condições de verdade (enquanto relativa a uma ordem de fatos ou mesmo de classes de fatos) sejam requisitos da compreensão mesma: não é suposto nenhum conhecimento de material de fato, como pressupostos para a validade de uma proposição ou enunciado em verdade, podemos estabelecer a diferenciação entre significados proposicionais e sentenciais, precisamente no nível da distinção entre o que é exigido para que aceitemos a validade de uma proposição, na perspectiva das inferencias, e das sentenças, no plano do entendimento textual: grosso modo, diríamos que a requisição de conhecimentos, no ultimo caso, diz respeito a condições que são internas à própria ordem do discurso.

15. Quando falamos uma língua ou compreendemos alguém que se expressa verbalmente, o princípio no qual a expressão e o entendimento do discurso se manifestam não se reduz àqueles pelos quais identificamos a compreensão da relação entre fatos. Quando compreendemos uma língua, no modo como ela se exprime em uma ocorrência qualquer (no fato de que alguém nos diz alguma coisa), não há quaisquer fatos ligados à expressão que determinem nosso entendimento, mas um conjunto de mensagens cujos conteúdos estão determinados no modo como uma regra gramatical fixa a referência de uma ocorrência.  Se o princípio da implicação é característico de nosso modo de conhecer fatos (através de mecanismos de implicação lógica), no caso da produção das aparências, estamos diante de um mecanismo produtor de sentidos textuais e sua compreensão é assunto de uma competência específica para este fim.

16. Pensemos agora em outras ordens de questões que são, a nosso ver, correlatas à compreensão de sentenças e palavras: quando consideramos os modos como os indivíduos interagem em sociedade, percebemos que um outro tipo de problemas irrompe como característico de uma concepção da realidade ligada aos mecanismos de compreensão. Do mesmo modo que a consciência acerca da realidade exterior, o comportamento social também não é um conjunto de fatos que possam ser analisados como se constituíssem fenômenos isolados, pois formam um verdadeiro sistema das ações que os indivíduos conduzem em contexto social, e que se estabelece como uma espécie de maquinaria para a produção de simulações.

17. Apenas a título de exemplo, pensemos em um caso mais do que exemplar da produção social das aparências, a saber, o jogo da sedução amorosa (que tem correlações estruturais com todo ato retórico de persuasão): quando desejamos impressionar alguém, procuramos muito simplesmente produzir uma imagem de nós mesmos para os outros, levando em conta todo um “pacote sensorial” (um conjunto de informações sobre como nos apresentamos, como nos vestimos, que gostos temos, como andamos, nos sentamos, como falamos, numa lista sem fim daquilo que supomos serem nossos atributos mais importantes), e que apresentamos como parte de uma identidade que queremos fazer crer ao outro como sendo a “nossa”.

Elementary Dating, de Rowan Atkinson (2005).

18. Certos ramos da psicologia social, fala-se na idéia de uma dramatização através da qual os indivíduos exprimem seu modo de se inscrever na vida social (e, por conseqüência, buscar a aprovação de seus semelhantes). Estas formas ou “técnicas” ligadas a nosso modo de apresentação social funcionam em uma estrutura que é necessariamente dúplice: de um lado, eles são um conjunto de coisas que fazemos para produzir uma imagem de nós mesmos para o outro (neste sentido, o processo pode ser abordado na perspectiva de sua dimensão produtiva, em seu aspecto de atividade daquele que lança mãos destes recursos); de outro lado, entretanto (o mais importante, na consideração de sua dependência com as modalidades da compreensão), estas formas de simulação prevêm, por assim dizer, uma instância de sua decifração, no nível da recepção destes sinais. Se assim não fosse, todo este conjunto de ações se perderia no nível de uma pura produção das aparências, mas sem qualquer efeito: sem que elas repercutam sobre uma recepção que seja capaz de identificar as informações expressas com o pacote de valores que identifica o sujeito de algum modo, estas ações se perderiam no vazio.

Referências Bibliográficas:
Goffman, Erving. “Introdução”. In: A Representação do Eu na Vida Cotidiana;
Volli, Ugo. “Interpretação”. In: Manual de Semiótica.

Próximas Leituras:
Peirce, Charles S. “Algumas conseqüências de quatro incapacidades”. In: Semiótica.


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