sexta-feira, 8 de abril de 2011

Notas de aula: a cultura como fato de comunicação

Fundamentos Linguísticos da Comunicação (GEC 043)
Aula no 1 (04 e 06/04/2011)

1.2. A cultura como fato de comunicação e seus sistemas de significação

1. Vimos, no item anterior de nossas exposições, que o estudo dos signos é determinado por uma consideração prévia sobre a ordenação cultural dos fatos humanos, o que caracterizaria o assim chamado fundo antropológico que seria próprio a estas teorias. Mas a proposição desta cláusula de origem dos saberes semióticos ainda deixa num certo vazio aquilo a que se poderia chamar de “cultura”, enquanto um conjunto de fenômenos observados e dotados de alguma unidade conceitual subjacente ou mesmo como matriz conceitual da caracterização de uma experiência tipicamente humana.

2. Precisamos nos interrogar sobre em que medida não apenas o estudo dos signos oferece uma maior clareza aos debates acerca daquilo que define a cultura enquanto marco de nossa condição ontológica de gênero, mas como acaba por parecer ser a única maneira rentável de alcançar esta dimensão comunicacional do conceito mesmo de “cultura”: enfim, qual é mesmo o conceito de cultura que nos permite assimilar ao estudo de seus fenômenos o valor característico de noções como a de “signo” e “significação”.

3. Uma boa maneira de formular estas questões implica em que nos voltemos para aquelas definições de dicionário de “semiótica” e “semiologia” apresentadas anteriormente e nos interrogarmos sobre a propriedade com a qual elas assimilam o estudo dos signos e dos sistemas de significação à ordem dos fenômenos culturais. Como é que naquelas várias definições, o signo (objeto de estudos suposto da semiótica) manifesta-se quase sempre indicado naquilo que é simultaneamente humano, subjetivo, social, coletivo e histórico? Este é o ponto que devemos desenvolver, doravante, em nossa exposição. Ele implica, em primeiro lugar, que reconheçamos, de antemão, a validade de uma assimilação da significação à ordem da partilha cultural dos sentidos, mas pede que nos dediquemos, a partir daí, a uma pergunta sobre o conceito mesmo de cultura, uma vez dado este pressuposto.

4. Invertamos por um momento a questão original, para nos perguntarmos agora sobre o que caracteriza, afinal de contas, um fato cultural, como fenômeno pertinente a um estudo semiótico? Ou ainda: o que conferirá a um fato qualquer o status de um fenômeno a ser estudado, na perspectiva de uma teoria da cultura, e de que modo seu estudo como fenômeno sígnico pode torná-lo pertinente em sua dimensão de fato que se explica pelo princípio da partilha cultural de sua raison d’être? A leitura dos textos de Umberto Eco e de Julia Kristeva foi desenhada para nos elucidar precisamente acerca de aspectos específicos dessa questão geral: exploremos com algum vagar o que eles nos têm a dizer sobre este ponto.

5. Nas últimas partes da introdução de seu Trattato, Umberto Eco assinala três ordens de fatos humanos que podem ser estudados na perspectiva de uma ciência da cultura, na medida mesma em que são concebidos enquanto fenômenos associados aos modos de funcionamento regrado dos signos em nossa experiência de interpretação. Vejamos cada um destes casos, na sua ordem mesma de apresentação, e como é que podem ser tratados, cada um deles, como fenômenos de comunicação, derivados de sistemas de significação:

·  a produção e o uso de objetos que transformam a relação homem/natureza;
·  as relações familiares como núcleo primário de relações sociais institucionalizadas;
·  a troca de bens, no contexto de uma lógica dos valores econômicos.

6. Em primeiro lugar, a produção e o uso de objetos: segundo Umberto Eco, o uso puramente instrumental de objetos não caracteriza necessariamente uma ordem de fatos que seja estudável na perspectiva dos fenômenos culturais. No reino animal, encontramos inúmeros exemplos da instrumentação da natureza com fins variados (habitação, proteção, disfarce, conquista sexual), mas dificilmente poderíamos caracterizar estas funções como propriamente culturais, já que o fundamento destas não se constitui em relação com os valores sistemáticos desta instrumentação, estando sua finalidade ligada às condicionantes biológicas da existência no reino animal (reprodução, nutrição, instinto de sobrevivência).
2001, a Space Odissey, de Stanley Kubrick (1968)

7. Na ordem dos fatos culturais, um aspecto decisivo do uso de objetos enquanto instrumentos está enraizado no caráter sistemático da ação instrumental: isto significa que a conduta humana se deriva de (ou até mesmo é capaz de engendrar uma), regra de uso dos objetos ou instrumentos; esta nossa relação característica com o mundo natural, uma vez que é derivada de uma regra que se aprende por gêneros culturalmente definidores de sua transmissão (baseados em parte em mimetizações ostensivas, mas também com lições de teor mais abstrato), pode ser legada às gerações seguintes, sob a forma de um aprendizado igualmente sistemático e institucional. A dimensão cultural da ação instrumental se instaura na medida em que o ato seja concebido como a instância mais concreta de uma função: a relação instrumental com a natureza assume a condição de uma instância mais particular (uma amostragem) de uma regra cultural mais geral (um tipo ou modelo de ação).


“Se um ser vivo usa uma pedra para quebrar uma noz, não se pode falar em cultura. Podemos    dizer que     se verificou um fenômeno cultural quando: (i) um ser pensante estabeleceu a nova   função da pedra (independentemente do fato de a ter usado assim como era ou a transformado numa ‘amêndoa’ lascada); (ii) esse ser denominou a pedra como ‘pedra que serve para algo’ (independentemente do fato de tê-lo feito em voz alta, com sons articulados e em presença de outros seres pensantes); (iii) o ser pensante está à altura de reconhecer a mesma pedra ou uma pedra ‘igual’ como ‘a pedra que responde à função F e que tem o nome de Y’ (mesmo sem jamais usá-la uma segunda vez: basta que saiba reconhecê-la no caso). “ Eco, Umberto. “Introdução…”: p. 17.

8. Segunda ordem de fenômenos humanos que podem ser estudados na sua dimensão de fatos de comunicação, as transmissões de vínculos familiares: a troca de mulheres em sociedades supostamente primitivas não pode ser concebida apenas na perspectiva de sua valorização, enquanto fato civilizatório (não se pode supor que, em sociedades nas quais as mulheres sejam tomadas como objetos de uso, estejamos em um quadro comparativamente inferior da evolução das sociedades). Numa perspectiva própria à antropologia estrutural de Levi-Strauss (e, mais remotamente, à noção de troca enquanto dádiva, em Mauss), a troca de mulheres é estudada em seu aspecto de transmissão sistematicamente ordenada das relações de parentesco em todas as sociedades, de maneira indistinta.

9. Neste contexto das trocas familiares (por intermédio de uma instância estruturalmente invariante, que é como se pode pensar o casamento em diferentes sociedades), o que se estabelece é um conjunto de alianças regrado por princípios daquilo que pode e não pode ser trocado (o que somente se fixa a partir de um sistema de valores subjacente a cada manifestação de troca), no contexto de regras culturais aparentemente específicas de cada sociedade (mas que podem ser explicadas pela recorrência de certos princípios estruturais comuns a todas elas).

10. A idéia de que este sistema subterrâneo de valores opera invariavelmente, de modo independente das circunstâncias de diferentes formações culturais (mas, ainda assim, como traço característico das concepções e práticas humanas) manifesta-se prioritariamente a partir daquilo que é genericamente interditado, como parte do sistema de trocas familiares: a caracterização do incesto como regra suprema do sistema de transmissões de vínculo familiar é, neste contexto, menos uma questão de proibição de um tipo de vínculo parental específico e mais o estabelecimento das condições nas quais a troca do parentesco se constitui legitimamente nas sociedades humanas, em geral (ela não é nem um fato biológico-individual, tampouco explicável pela história específica de cada comunidade, mas uma construção humana e social, de caráter universal e estruturalmente invariante).

       “É evidente que o estabelecimento destas regras que lembram as regras fonológicas só é possível se considerarmos o parentesco como um sistema de comunicação, e se o ligarmos assim à linguagem. E, com efeito, ele é um sistema de comunicação para Levi-Strauss que verifica que a ‘mensagem’ de um sistema de parentesco são ‘as mulheres do grupo, que circulam entre os clãs, raças ou famílias (e não, como na própria linguagem, as palavras do grupo que corculam entre os indivíduos’. A partir desta concepção das regras do parentesco como regras de comunicação social, Levi-Strauss opõe-se ao hábito que têm os antropólogos de classificar estas regras em categorias heterogêneas e denominadas com termos diversos: proibição do incesto, tipos de matrimônio preferenciais (...); ele pensa que ‘elas representam outras tantas maneiras de assegurar a circulação das mulheres no seio do grupo social, isto é, de substituir um sistema de relações consangüíneas, de origem biológica, por um sistema sociológico de aliança.” In: Kristeva, Julia. “A semiótica”: p. 417,418.

11. Terceiro exemplo, a troca de bens econômicos: na medida em que falamos de “troca” de objetos, no contexto de uma prática cultural determinada (a da negociação econômica), o sentido comunicacional do fenômeno se revela, em primeira instância (nas sociedades humanas, intercambiam-se objetos, com propósitos variados). Mais importante, este processo de troca não se dá de maneira absolutamente gratuita, mas está fundado num tipo de valorização sistemática dos objetos, no contexto mesmo da troca de bens (o velho problema do “valor de troca”, como acrescentado ao “valor de uso” das coisas). O estabelecimento de um sistema dos valores pelos quais os objetos (agora tornados “bens”) podem ser comunicados entre si se constitui em um assunto que pode concernir ao olhar semiótico (especialmente quando consideramos a intrusão de um instrumento como o da “moeda”, e que serve como intermediador mais abstrato desse sistema de valores).

Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1986).

13. Em todos estes casos, vislumbramos alguns aspectos daquilo que interessa a uma teoria semiótica, quando aborda o universo de seus fenômenos de interesse, enquanto fatos ligados a um hipotético “sistema da cultura” mais geral: o uso de objetos, a troca familiar e as relações econômicas não constituem-se apenas como fatos explicáveis na ordem específica dos campos de conhecimento aos quais associamos estes fenômenos (a saber, a biologia, as teorias sociais ou a economia), mas deixam entrever uma dimensão de construção simbólica da realidade (na forma de um sistema socialmente partilhado de referências e de valores de sentido), sob os quais a particularidade destes fenômenos se sustenta como parte de um acervo das sociedades humanas, em geral, na sua relação com o mundo objetivo.

14. Com isso, Eco fica justificado em afirmar que os mecanismos fundamentais que caracterizam uma cultura, concebida em seu sentido antropológico (isto é, como concernente à caracterização do espírito humano em seus principais fundamentos e práticas), somente se revelam mais integralmente a uma análise, na medida em que são tomados enquanto fenômenos comunicacionais e, por sua vez, sustentados em sistemas de significação: em cada uma dessas manifestações listadas por Eco (o caso de Kristeva não é dramaticamente distinto, e até mesmo estendem-se para além a validade das teses do primeiro, já que amplia este universo do alcance das teorias semióticas, para introduzir os fenômenos da expressão artística), fica comprovado que, tomadas na sua condição de fatos humanos, cada um desses domínios pode ser estudado numa perspectiva que os valoriza a partir daquelas categorias que exploraremos em seguida, durante nosso percurso (em última análise, como partes de uma construção simbólica).

15. Em todos estes casos, temos um fenômeno cultural em vista, na medida em que a realidade de cada uma destas ordens de fatos se sustenta sobre uma pactuação sistemática dos valores que lhe seriam supostamente intrínsecos: assim sendo, o uso instrumental de objetos, por exemplo, não se perde na sua absoluta individualidade concreta, mas pode ser sempre repetido, em circunstâncias similares, como parte de uma função inerente à sua execução, e que é aquela pela qual normalmente aprendemos sua mecânica, quando ela nos é transmitida; e a transmissão mesma dessas práticas pelo aprendizado é um aspecto que as diferencia daquilo que se passa em contextos aparentemente similares, como em casos no mundo natural, já que o objeto deste ensinamento não é da ordem da pura replicação mecânica das práticas, mas, como vimos, da assimilação de seus aspectos estruturais.

16. Do mesmo modo, a troca parental não se determina na particularidade de uma biografia ou da história de uma sociedade, mas se enraiza em regras culturais que funcionam como uma “estrutura profunda” da gênese das relações sociais (através da transmissão das linhagens de parentesco, aprendemos um pouco sobre como as relações sociais se formam, em seu aspecto de regras e interdições culturais). O mesmo se dá, finalmente, com a troca de bens, vemos que o valor com o qual os objetos são intercambiados, num contexto econômico, não se explica na particularidade de seu valor de uso, mas na generalidade que o valor de troca lhe associa (e, com a visão do marxismo, vamos mais longe, ao descobrirmos as artimanhas pelas quais o sistema capitalista é capaz de reificar esta dimensão da troca, alienando-a da relação mais direta da mercadoria com sua finalidade de uso).

Referências Bibliográficas:
ECO, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica
KRISTEVA, Julia. “Semiótica”. In: História da Linguagem;

Próximas Leituras:
ECO, Umberto. “Premissa”. In: O Signo;
VOLLI, Ugo. “Comunicação”. In: Manual de Semiótica.

Um comentário:

  1. bom dia professor, tentei mandar um email para: bjpicado@hotmail.com mas voltou. Gostaria que me desponibilizasse um outro email se possível para manter um melhor contato. Já que tenho uma certa urgência colocarei minha dúvida aqui mesmo:gostaria de saber se o fichamento solicitado é bibliográfico, de conteúdo ou de citações?


    Desde já agradeço a atenção

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