sábado, 16 de abril de 2011

Notas de Aula: comunicação e sentido, em sentido lato e estrito

Queridos,


Seguem abaixo as notas referentes às duas últimas aulas, em que procurei introduzir o assunto da segunda unidade, sobre as relações entre o estudo das significações e o campo da comunicação.


Divirtam-se,


Benjamim



Fundamentos Linguísticos da Comunicação – GEC 043
Aula nº2 – 11 e 13/04/2011
A Semiótica no contexto das disciplinas da comunicação

2.1.  Da comunicação e do sentido, em sentido lato e estrito
1. Já vimos até aqui a importância que a atenção conferida aos sistemas de significação assume para a abordagem de fenômenos atribuídos ao campo cultural, no modo como Umberto Eco e Julia Kristeva abordam (nos modos que lhe são próprios) os limites naturais de uma teoria semiótica: entretanto, especialmente no caso de Eco, a dimensão comunicacional dos fenômenos culturais é concebida numa latitude um pouco mais extensa, para incorporar fatos que não seriam usualmente identificados com o universo da comunicação.
2. Grosso modo, quando consideramos a dimensão comunicacional de fenômenos como a transmissão parental, a troca econômica de bens ou o uso instrumental de objetos da natureza, não assimilamos necessariamente o que é do quinhão da comunicação nesses processos ao universo da expressão e compreensão de mensagens: em cada um desses casos predomina, ao invés, a noção de que trata-se de ocorrências de um costume humano, cujo fundamento é a existência de sistemas de regras que poderiam ser, por sua vez, sistemas de signos e que estão na base de qualquer coisa que assumamos enquanto dado cultural.

3. O valor heurístico da semiótica não está, nesses casos, associado ao fato de que, sendo fenômenos de comunicação, devam ser, por exemplo, assimilados a enunciados mas, ao invés disto, que por se constituírem em fatos de cultura, têm seu sentido mesmo determinado por uma regra ou por um sistema de fundamento necessariamente coletivo. Antes de explorarmos determinadas alternativas desse tipo de concepção sobre os processos e fenômenos comuicacionais que nos são mais familiars, proponho que nos entretamos nesta pequena “aventura semiótica”, que nos foi certa vez proposta por um eminente pensador bolonhês:

“Mas por agora, o que nos interessava ressaltar era como um indivíduo normal, posto diante de um problema tão espontâneo e natural como uma comum ‘dor de barriga’, é constrangido a entrar imediatamente numa apertada rede de sistemas de signos: alguns ligados à possibilidade de efetuar operações práticas, outros mais diretamente envolvidos com atitudes que diremos ‘ideológicas’. Todos, de algum modo, fundamentais em relação aos fins da interação social, e a ponto de nos perguntarmos se os signos permitem ao Sr. Sigma viver em sociedade ou se a sociedade na qual Sigma vive e se constitui como ser humano não é mais do que um complexo Sistema dos sistemas de signos.” In: Eco, U. “Premissa”, in: O Signo, de Umberto Eco

4. Quando examinamos com atenção aquelas etapas do processo pelo qual o Sr. Sigma, de Umberto Eco, dá-se conta de um mal-estar físico e busca localizar um médico para com ele consultar-se, enfrentando em cada segmento deste percurso os obstáculos de um mundo que se revela ao sujeito na condição de algo que deve ser cogitado, interpretado e, em última instância, decifrado resolutamente, de tudo isto podemos inferir (com os devidos riscos de incorrermos no temido “imperialismo teórico” lembrado pelo próprio Eco) que a comunicação é uma espécie de tecido constitutivo de nossa existência, enquanto seres culturais.

5. No texto de Ugo Volli, que serve de condutor a esta exposição, propõe-se igualmente algo como a impossibilidade da incomunicação: diante de tudo aquilo que se manifesta com sentido, não há como ignorarmos a essencial comunicabilidade do mundo, quando ele passa pelo filtro de nossa experiência. Há que se notar, em primeiro lugar que a comunicação, assim entendida, é um efeito de superfície de um fenômeno mais grave e importante: não é que o mundo se comunique a nós, por sua própria graça ou força, mas o fato de que esta transparência do mundo é o resultado de algo a que podemos chamar de sentido ou significação, que lhe seriam inerentes Enfim, é porque há sentido que as coisas comunicam (mesmo aquelas que estão na natureza, mesmo aquelas que são inertes e até mesmo as que sequer existem).

6. Ora, nestes termos, podemos desde já estabelecer que, ao menos de um ponto de vista mais remoto, as teorias semióticas trabalham o conceito de comunicação a partir de sua assimilação a uma “ordem do sentido”: a impossibilidade de não comunicar implica a necessidade do sentido. O que nos exige uma melhor definição do que quer dizer esta subscrição do comunicável ao sensato ou ao significativo: pois subscrever pura e simplesmente a comunicação ao sentido pode ter o efeito contrario do desejado (esvaziar precisamente o conceito de comunicação e não nos permitir esclarecer em que sentido a semiótica tem alguma relação com os fenômenos e processos de nosso campo).

7. Há vários aspectos daquilo que faz o sentido das coisas acarretar o sentido comunicacional com que elas nos aparecem: no texto de Volli, um destes caracteres se define no âmbito das relações que estabelecemos para as coisas, quando elas se manifestam para nossa compreensão (o sinal luminoso que indica a conduta que eu devo assumir; o cheiro familiar que dispara no espírito o movimento da distensão temporal da recordação; os sons musicais que suscitam uma elevação estética não-ordinária de nossa escuta). As manifestações do sentido têm uma dimensão comunicacional, em primeiro lugar, por infundirem na mente daquele que se confronta com elas as relações que são o fundamento de sua significação (se fazem sentido, é porque são signos, portanto, coisas que estão para coisas, aliquid pro aliquo).

“Aquela forma vermelha ali, por exemplo, é um carro; move-se em determinada direção, está para dobrar a esquerda, no entanto, situa-se na parte central do trânsito. Uma luz amarelada lampejante indica a intenção do motorista (que está lá, presumo, ainda que não o vislumbre) de dobrar à esquerda. Aqui, porem, este ruído é o tocar do telefone, que sei usar de maneira não só técnica,mas também interpessoal (de dia, de noite, com pessoas conhecidas e não casualmente, para dizer alguma coisa e não para cantar, etc.). De acordo com o momento, seu tocar me dá alegria, angústia, surpresa, tédio (…). Aquela pessoa tem o sorriso cansado, é jovem, tem jeito de estudante, pela sua attitude, sei que quer falar comigo. Vejo uma fumaça lá longe e compreendo que deve haver um incêndio em algum lugar”. In: Volli, Ugo. “Comunicação”, p. 17.

8. E isto não é tudo: pois se a relação entre ter sentido e comunicar se resolvesse no caráter eminentemente relacional da significação, estaríamos falando de um sentido muito pobre de comunicação (a rigor, como já destacamos acima, este seria apenas um sentido primário de comunicação). Nestes termos, o fato de que compreendemos o mundo combinando seus segmentos mediante variados critérios de sua correlação possível (por semelhança ou por sua falta, por contigüidade ou por enumeração, dentre tantos outros) responde apenas ao princípio pelo qual podemos determinar a estrutura do próprio sentido, que é da ordem da relação significativa. A comunicação, em seu sentido mais importante (geral e específico), permanece fora do alcance desta interrogação.

9. Como fazer para que o conceito de comunicação finalmente se manifeste como a consequência de uma concepção semiótica sobre a tessitura do sentido? Neste caso, precisamos nos interrogar sobre as condições em que o mundo se manifesta significativamente ou sensatamente para alguém: é evidente que (ao menos numa perspectiva mais radicalmente fenomenológica), a emergência do sentido parece vir associada a uma radical negatividade, com respeito a tudo aquilo que é da ordem do instituído, do convencional, do culturalizado; é neste contexto que se fala tão frequentemente no fenômeno do sentido como associado a uma “abertura diferencial”, que caracterizaria os modos de significação de inteiras regiões da expressão poética e artística, por exemplo. O modo de endereçamento próprio ao discurso da arte não deve supor, a não ser sob condições muito específicas, a concorrência de uma regra da interpretação, como chave condutora do sentido mesmo das obras.

Martin Heidegger, “A linguagem da comunicação e a linguagem poética” (1953)

10. No texto de Volli, esta necessidade de conferir um lugar específico da comunicação, numa abordagem semiótica de suas manifestações, parece instaurar um limite intransponível entre os regimes de nossa compreensão do mundo (grosso modo, o fato de atribuímos sentido às coisas a partir do instante mesmo em que as percebemos) e as estruturas que mobilizamos para exprimir esta mesma compreensão (que constituiria o lugar próprio da comunicação, por assim dizer): uma tal concepção do que é próprio à comunicação acaba por abordar o problema de modo parcial, mais uma vez; nesta perspectiva, os fenômenos comunicacionais são abordados em seu aspecto mais ativo de manifestação, o que permite isolar a “autêntica” comunicação daquela que caracteriza a estrutura conceitual de nosso contato sensorial com o mundo. Mas, aqui, mais uma vez, sacrificamos o fenômeno da comunicação, em nome de sua suposta “pureza” ontológica.

11. Em termos, a questão sobre a abordagem semiótica da comunicação não deve identificar-se com aquilo que é próprio à sua dimensão mais expressiva, mas também explorar o que esta face ativa de nossa compreensão (o fato de que falamos sobre e a partir daquilo que faz sentido para nós) tem em comum com o fato de que, mesmo emudecidos, continuamos a existir dentro desta mesma legislação da significação: o que há de comum, enfim, entre simplesmente perceber as coisas “como são”, de um lado, e falar destes dados existenciais através das formas do discurso, de outro? Que continuidade pode-se conceber entre sentir-se mal e descrever tal estado a alguém, em alguns de seus aspectos? O que há, enfim, de filosoficamente interessante em pensarmos sobre o fato de que uma obra de arte quer dizer alguma coisa, muito embora sua significação possa não se exprimir numa forma absolutamente convencional?

12. Em todas estas questões, podemos entrever que há um sentido genericamente comunicacional que habita a ordem do sentido, mesmo quando não empregamos o discurso e a expressão para dele darmos conta. De maneira simples, podemos supor que isto se dá porque a comunicação de que podemos falar teoricamente (numa perspectiva semiótica, ao menos) é antecedente, por exemplo, ao advento da linguagem natural na qual empregamos muitas destas expressões. Numa abordagem mais genérica do conceito de comunicação que é privilegiada pelas teorias semióticas, pode-se dizer que exprime-se também um sentido mais radical e fundamental do conceito.

13. A comunicação seria a condição dc possibilidade pela qual a mais privativa das experiências não se deixa enclausurar numa absoluta interioridade psicológica e individual, uma vez que é investida de sentido, por aquele que concretamente a vivencia: uma sensação, uma emoção, uma paixão, são necessariamente vivenciadas no horizonte de uma compreensão outra e é aqui que se manifesta aquilo que, para tantos quantos escrevem sobre estes fenômenos, caracteriza a indissociabilidade entre significação e comunicação.

Referências Bibliográficas:
ECO, Umberto. “Premissa”. In: O Signo;
VOLLI, Ugo. “Comunicação”. In: Manual de Semiótica.

Próximas leituras:
BARTHES, Roland. “Introdução” e “Língua/fala”. In: Elementos de Semiologia;
BARTHES, Roland. “O Mito, hoje”. In: Mitologias.

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